Título: Os monstros são normais
Autor:
Fonte: O Globo, 20/12/2011, Opinião, p. 6

DANIEL AARÃO REIS

Anders Breivik Behring, 32 anos, matou, em Julho passado, 76 pessoas na Noruega. Oito morreram em Oslo, na explosão de um carro-bomba. Pouco depois, ele apareceu na ilha de Utoya, ao norte da capital, onde se realizava um festival organizado pela Juventude do Partido Trabalhista. Vestido de policial, penetrou na ilha, sacou armas, e assassinou calmamente os jovens. Matou 68. E feriu muitos outros. Esgotada a munição, telefonou para a polícia e se entregou.

Os crimes surpreenderam e chocaram. Podia ter acontecido em qualquer lugar, não na Noruega. E deveriam ter sido perpetrados por terroristas islâmicos, homens barbudos e morenos. Era o que a polícia esperava. E foi por isso que o “New York Times” atribuiu o atentado a uma organização terrorista islâmica. Entretanto, o responsável era um norueguês de boa cepa, educado, alto, branco, barbeado, de olhos claros, um perfeito tipo nórdico, quase angelical.

Quem é Anders Behring? O que pretendeu com os crimes?

Durante sete anos, entre 1999 e 2006, militou no Partido do Progresso. Ali compartilhou a atmosfera de “fortaleza sitiada” que é própria das direitas europeias: o medo e o ódio dos “outros”, dos imigrantes, em particular, a sensação de perda de identidade, derivada de misturas raciais, do declínio de valores consagrados, como os da família monogâmica heterossexual, do trabalho reto, do Estado nacional, dos heróis tradicionais. Tudo isto estaria se dissolvendo, e se os europeus não “resistissem”, a Europa poderia se tornar uma “Eurábia”, segundo os termos da escritora Oriana Falacci.

A análise do site de Anders, disponível na internet, é congruente com estas ideias, e transmite uma clara mensagem: a Europa está em perigo de morte. Para escapar do triste destino, é preciso mobilizar os heróis míticos, como Carlos Martel, El Cid, Ricardo Coração de Leão e o Tsar Nicolau I, e empunhar armas para defender os valores ancestrais.

E quem ameaça a integridade e a identidade da Europa? O multiculturalismo, expresso pela força pervasiva — e ascendente — do marxismo e do islamismo.

Tais ideias não são uma “esquisitice” da direita norueguesa. Compartilham-na amplos círculos — todos normais — no continente europeu. Não por acaso, os crimes de Anders Behring mereceram palavras de compreensão de políticos e intelectuais.

Destacaram-se, entre outros, Jacques Coutela, do Front Nacional francês. Ele chamou o atirador de “ícone”, atribuindo os crimes às ondas imigratórias. Em Roma, Francesco Speroni, da Alianza Norte, ex-ministro do Governo Berlusconi, membro do Parlamento europeu, declarou que o ideal do assassino norueguês é “a defesa da civilização ocidental”. E acrescentou: “Anders Breivik sinalizou o perigo de algum tipo de Eurábia, a civilização cristã precisa mesmo ser defendida”. Um colega seu, Mário Borghezi, também do Parlamento europeu, integrante do Comitê de Liberdades Civis, sugeriu a hipótese de que o atentado poderia fazer parte de um plano para “desacreditar a direita”.

As direções dos partidos de direita trataram logo de sublinhar que as declarações eram de “caráter pessoal”. Entretanto, nada têm de “pessoal”, assim como nada tem de “pessoal” o site de Anders Breivik, pois fazem parte de um universo de referências cada vez mais visível na ascensão das direitas na própria Noruega, na Hungria, na Itália, na França, na Áustria, até na doce Holanda, sem falar dos políticos das chamadas “direitas moderadas”, que alimentam tais ideias e as instrumentalizam com propósitos eleitorais.

Contudo, a despeito destas evidências, dois psiquiatras, depois de 36 horas de conversas com Anders Breivik, chegaram à conclusão que o “anjo da morte” não pode ser responsabilizado penalmente. Ele seria um esquizofrênico paranóico e cometeu os crimes em “estado psicótico”. Caso prevaleça o laudo, o assassino só poderá ser condenado, em julgamento próximo, a um tratamento, e até conseguir superar suas “doenças”.

Assim, o horrível é considerado “monstruoso”, “anormal” e “desumano”. Há uma crença de que, considerados “anormais”, os crimes e as ideias que os motivaram seriam melhor enterrados. Trata-se de uma ilusão, que induz à passividade.

Faz evocar o caso de um outro “anjo da morte”, Otto Adolf Eichmann, responsável pela matança de milhões de judeus. Assistindo a seu julgamento, Hanna Arendt observou que, “apesar dos esforços da acusação, todo o mundo podia ver que Eichmann não era um monstro”. Ao tratar os campos de concentração em termos de “administração” e os campos de extermínio em termos de “economia”, agia como um ser humano normal, que obedecia a ordens e à Lei. Aliás, o próprio Eichmann, sem ser desmentido, afirmaria que não conheceu ninguém, sob o nazismo, que tivesse tomado posição contra o genocídio dos judeus. Anormais, na época, eram os que se opunham a Hitler. Lembrou que “ninguém veio me ver para criticar o que eu fazia no cumprimento do dever”. E finalizou: “Eu só teria má consciência se não tivesse acatado as ordens.” De resto, grande parte da sociedade alemã não se sentia concernida pelos crimes praticados contra os judeus.

No final do julgamento, o Dr. Servatius, defensor de Eichmann, permitiu-se dizer: “Meu cliente fez atos pelos quais você, se vence, é condecorado. Se vencido, vai para o cadafalso.”

Eichmann foi para o cadafalso. Andres Breivik, pelo jeito, irá para um confortável manicômio.

DANIEL AARÃO REIS é professor de História Contemporânea da UFF. E-mail: aaraoreis.daniel@gmail.com .