Título: Redescoberta francesa
Autor: Corrêa, Maurício
Fonte: Correio Braziliense, 13/09/2009, Opinião, p. 25

O Brasil e a Inglaterra já mantiveram relações comerciais bem mais intensas do que hoje. Assim como Portugal viveu dependente de empréstimos ingleses, o Brasil, após a Proclamação da Independência, seguiu idêntica sina de submissão. Tornou-se freguês contumaz de financistas ingleses, entre os quais preponderantemente se incluíam os Rothschild. O país lhes fez sucessivos empréstimos, cujos pagamentos se encompridaram do Império à República e, nesta, em várias de suas fases históricas. É sabido que dívidas contraídas pela monarquia lusa tiveram que ser repassadas para o Tesouro Nacional como imposição do reconhecimento oficial da Independência. Todo esse sistema se acoplava à sujeição da Corte Portuguesa à Inglaterra, que envolveu até mesmo a própria segurança da coroa, tanto que a fuga de D.Maria I, de seu filho, príncipe regente Dom João, e de todos que os acompanharam na transferência para a Colônia, só foi possível graças à garantia dada pela esquadra britânica.

Nesse período da vida nacional ¿ Colônia, Império e parte da República ¿, comerciantes ingleses dos mais atraentes ramos de negócio se estabeleceram nas ruas do Rio de Janeiro. Os primeiros teares e mesmo tecidos, confecções, itens de armarinho, trilhos, fios e locomotivas vinham do Reino Unido. Com o tempo, as importações dele provenientes cederam lugar aos EUA. A parafernália de componentes ferroviários era quase toda fornecida pela Inglaterra. Como inglesa também era a antiga The Leopoldina Railway Company Ltd ¿ Estrada de Ferro Leopoldina ¿, que outrora circulava em quase todo o leste do estado de Minas, e ia até a Praça Mauá, no Rio. Após a Segunda Guerra Mundial, a ferrovia foi vendida ao governo federal e paga com créditos de dívida de guerra devidos ao Brasil, e com a aquisição de mercadorias inglesas, parte delas constituída de supérfluos. A partir daí, o comércio de importação ¿ de quinquilharias a máquinas ¿ passou a ser hegemonicamente dos EUA.

As relações comerciais do Brasil com a França foram bem mais diminutas do que com a Inglaterra. No fim do século passado, o comércio com a França se ampliou com a compra de caças Mirage, o que já serviu para assustar os americanos. Ninguém mais do que os franceses, entretanto, ocuparam os espaços culturais da vida brasileira. Eles não só fermentaram a formação intelectual da elite do país, como a abasteceram, e também a outros segmentos sociais, de espetáculos de entretenimento com presenças de renomados artistas. Os teatros do Rio de Janeiro os recebiam com constância e regularidade. A cultura nacional deve inegavelmente à França grande parcela de sua genética embrionária. Quem quisesse saber o que se passava ao redor do mundo tinha necessariamente que saber francês. As comunicações para o mundo exterior se faziam nesse idioma. A língua diplomática era o francês. Quando Dom Pedro II foi apeado do poder, o país escolhido para viver seus últimos dias foi de propósito a França, que o acolheu em caráter oficial.

Estaria a França recuperando o tempo perdido e reingressando no Brasil na realização de bons negócios? Nicolas Sarkozy e Barack Obama se tornaram amigos de Lula. O francês o tem festejado onde o encontra. Carla Bruni, a primeira-dama francesa, italiana de nascimento, tem pai que vive em São Paulo há décadas, onde é empresário. Esse fato sem dúvida ampliou a simpatia de Carla pelo Brasil e, consequentemente, de seu marido Sarkozy. Barack Obama tem dado evidências de apreço por Lula, não perdendo tempo, quando pode, para cortejá-lo. Na reunião do G-20 de abril passado, realizada em Londres, ao se aproximar do presidente brasileiro teria dito That\`s my man right here, traduzido pela mídia como ¿este é o cara¿. Se alguém pensa que tudo é mera coincidência, não é verdade. No fundo, sabe-se que os EUA querem reaver o mercado nacional que deixaram com o tempo sucumbir.

Sarkozy até agora leva vantagem. O comparecimento à parada do Sete de Setembro não foi à toa. Além da quase certa aquisição dos 36 caças Rafale, foi oficializada a compra de quatro submarinos convencionais, o casco de outro de propulsão nuclear, por 4,3 milhões de euros, e de 50 helicópteros militares, estes ao custo de 1,8 bilhão de euros. A extravagante euforia de Lula acerca do negócio com os Rafale causou ciúme às duas outras concorrentes: Boeing e Saab-Grippen. No encontro, Sarkozy também garantiu a transferência de tecnologia de seus aviões. Os suecos fizeram o mesmo. Se com os EUA a venda dos F-18, Super Hornet se prendia acentuadamente a esse fato, agora o entrave não existe mais. O país faria o mesmo. A verdade é que, depois da festa com o presidente francês, a definição final da compra vai consumir tempo.

O Brasil ganhou novas dimensões nos dias de hoje. Vem pouco a pouco se desvencilhando das amarras do atraso. Sai da condição de importador de petróleo para se tornar exportador. Esse fato, aliado a outros, fazem do país atração internacional. O governo deve fechar o negócio que mais convém aos interesses nacionais. Espera-se que nem o sorriso francês nem muito menos o afago ianque turvem a segurança de um bom negócio.