Título: Caixa de surpresas líbia
Autor: Berlinck, Deborah
Fonte: O Globo, 07/07/2012, O Mundo, p. 36

Num misto de euforia e confusão - com muitos candidatos prometendo o paraíso, mas sem ter um projeto claro para o país - os líbios vão hoje às urnas na primeira eleição democrática multipartidária desde 1952. Nove meses depois da morte do ditador Muamar Kadafi - que se agarrou ao poder durante 42 anos até ser assassinado por rebeldes - a população elegerá os 200 integrantes do Parlamento, que vão escolher um Gabinete e o novo premier.

Com milícias ainda dominando partes do país, 142 partidos registrados, uma proliferação de candidatos e ausência de sondagens, o voto é um mergulho na aventura - uma caixa de surpresas. Há expectativas também em relação ao esquema de segurança da votação. Ontem, grupos armados no Leste interromperam metade das exportações de petróleo para pressionar por mais autonomia. Um helicóptero carregando material de votação fez um pouso de emergência perto de Benghazi depois de ser atingido num ataque que matou uma pessoa a bordo.

- Não há segurança no país. O Ministério do Interior e o Exército são incapazes de proteger a votação. A comissão está em estado de depressão - desabafou Emad el-Sayih, vice-chefe da Alta Comissão Nacional Eleitoral.

A incerteza sobre o resultado é tal que Anas el-Gomati, que comanda o Instituto Sadeq, o primeiro centro de estudos independente do país, em Trípoli, não arrisca um prognóstico:

- Das 200 cadeiras (do futuro Congresso), 120 vão para candidatos independentes. O problema é que ninguém sabe o que estas pessoas vão fazer ou que programa político ou econômico têm para o futuro - preocupa-se.

É a pergunta que a ginecologista Rokaya Elbradi, de 54 anos, de Trípoli, também faz: o que defendem os candidatos? Ela votará nos secularistas de Mahmoud Jibril, por temer islamistas. E diz que é sua independência como mulher que está em jogo:

- Vamos eleger pessoas, mas não temos ideia do que pretendem fazer! O mais importante para mim são os direitos das mulheres. Não temos direitos aqui. O problema é a religião. Estão interpretando a nossa religião de forma errada.

Distribuição polêmica de vagas

Mais de 80% dos cerca de 3 milhões de líbios em idade para votar se inscreveram. Além das 120 vagas para candidatos independentes, as 80 cadeiras restantes serão destinadas aos partidos políticos, cujos candidatos são eleitos por meio de representação proporcional. A nova Constituição líbia levará cerca de quatro meses para ficar pronta. E só em 2013, quando as regras entrarem em vigor, os líbios irão mais uma vez às urnas para eleger membros do Parlamento - institucionalizando a tão esperada democracia no país.

Já tem gente decepcionada antes mesmo de votar, como Seraj, de 28 anos, professor de biologia numa escola em Benghazi - a segunda maior cidade do país e berço da rebelião contra Kadafi. Ele diz conhecer várias pessoas que pregam o boicote às eleições na cidade. Motivo: ele e os amigos julgam que Benghazi, por ter iniciado a rebelião, merece mais vagas:

- Estão nos roubando a revolução. Benghazi terá 60 cadeiras, enquanto Trípoli terá cem. Não é justo. Fomos nós que fizemos a revolução. Ou nos dão mais cadeiras ou boicotamos.

Há quatro meses sem receber salário, Seraj faz bico como taxista para garantir seu sustento. Ele queixa-se não só da falta de trabalho como da insegurança nas ruas de Benghazi, onde todo mundo continua armado. Ele, que gosta da religião, não quer partido religioso governando o país, como no Egito ou na Tunísia. Para Gomati, a reação de Seraj é típica de um problema que ele descreve como "velho vinho em garrafa nova". É hora, diz, de os líbios pararem de olhar o país sob o prisma do tribalismo ou do regionalismo, e de começarem a pensar em como fazer o Estado funcionar, para que todos gozem das riquezas de forma equitativa.

- Se a conversa partir para "quem é dono da revolução"?, não vamos mais falar de democracia. Revolução é sobre violência, apropriação. Já democracia é sobre ser civilizado e entender o valor do merecimento. Não há fórmula para que todos fiquem satisfeitos. Trípoli ganhou mais cadeiras porque tem mais gente vivendo nesta região.

Na ausência de sondagens, é quase impossível medir que partidos ou personalidades estão na frente na disputa. Há o grupo de modernistas defensores do secularismo, liderado por Mahmoud Jibril e Ali Tarhouni, na legenda Aliança de Forças Nacionais. Jibril comandou a transição, e o segundo foi uma espécie de ministro das Finanças e do Petróleo no governo de transição. Mas muitos líbios desconfiam de Jibril porque ele foi ministro da Economia de Kadafi antes de se voltar contra ele.

Outro concorrente é a Frente de Salvação Nacional - um grupo de oposição a Kadafi desde os anos 80, comandado por exilados. E há os islamistas, sob a liderança de Abdel Hakim Belhaj - que comandou uma facção considerada próxima da al-Qaeda, o Grupo Líbio de Combatentes Islâmicos. Cartazes de Belhaj dominam Trípoli. E dizem que ele é patrocinado pelo Qatar - país com crescente influência local. Há também um grupo islamista ligado à Irmandade Muçulmana, do Egito: o Partido Justiça e Construção, mais moderado e liderado por Muhammad Suwan, ex-prisioneiro de Kadafi.

Que tendência religiosa ou ideológica poderá sair desta eleição? Para Gomati, assim como no Egito e na Tunísia, o secularismo foi imposto na Líbia. Portanto, clamores por dignidade, respeito e liberdade também querem dizer liberdade religiosa. Mesmo sem descartar a emergência de um islamismo moderado, ele insiste: é cedo para fazer previsão.