Título: Atestado de fracasso da ONU
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Fonte: O Globo, 03/08/2012, O Mundo, p. 32

Renúncia de Annan exalta incapacidade da diplomacia de negociar fim do conflito na Síria

GENEBRA Desde fevereiro, quando foi nomeado enviado especial da ONU e da Liga Árabe, Kofi Annan assistiu a vários atentados a bomba na Síria. Lançou um plano de paz e uma proposta de cessar-fogo sem ter um dia sequer livre de mortes. Viu crescer a repressão do regime de Bashar al-Assad e a determinação de uma dissidência cada vez mais bem armada. Testemunhou ainda, de mãos atadas, as divergências do Conselho de Segurança das Nações Unidas e a atuação de atores que, embora publicamente críticos ao banho de sangue no país árabe, atuavam em causa própria: de um lado, Rússia e China servindo como escudo para o governo de Damasco. Do outro, o bloco liderado por Arábia Saudita, Qatar e Turquia armando a oposição. Após pouco mais de cinco meses de esforços fracassados, o veterano diplomata renunciou ao posto sem esconder a amargura.

Tanto o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, quanto a chefe da diplomacia europeia, Catherine Ashton, correram para pedir a nomeação de um novo mediador internacional para o conflito sírio. Mas, em um dia em que os rebeldes do Exército Livre da Síria (ELS) comemoravam o uso de tanques - apreendidos das forças de Assad - nas ruas de Aleppo, o recrudescimento da guerra civil pôs em dúvida a eficácia de qualquer mediação estrangeira neste ponto.

"A comunidade internacional tentou administrar esse conflito, sem resolvê-lo. (...) A diplomacia não está morta, mas hibernando. A renúncia de Annan terá pouco impacto em um regime agora preocupado apenas em sufocar o levante de qualquer maneira. O banho de sangue vai aumentar e todos os lados, com seus aliados estrangeiros, vão se atracar. Quando não tiverem nada mais para perder, então, conversarão", arriscou Chris Doyle, diretor do Conselho de Entendimento Árabe-Britânico, em artigo no "Guardian".

Annan não escondeu a amargura e a decepção. Fez críticas a todos os lados, do governo sírio à oposição, passando pelas potências da ONU.

- Quando o povo sírio necessita desesperadamente de ação, (os países) continuam apontando o dedo e xingando no Conselho de Segurança - criticou. - Sem uma pressão séria, unida e com propósitos, inclusive das potências da região, é impossível para mim, ou para outra pessoa, obrigar o governo sírio, em primeiro lugar, e também a oposição, a adotar os passos necessários para dar início a um processo político.

Golpe também na Assembleia Geral

A renúncia fora planejada. O anúncio oficial em Genebra ocorreu horas depois da publicação de um artigo, assinado pelo próprio Annan, no jornal "Financial Times" - intitulado "Meu conselho de saída sobre como salvar a Síria". Nele, as críticas são ao regime de Assad, chamado de "40 anos de ditadura".

"Está claro que o presidente Bashar al-Assad deve deixar o Gabinete. Mas o foco maior devem ser as medidas e estruturas para assegurar uma transição pacífica de longo prazo", escreveu o agora ex-mediador.

Tão logo a decisão veio à tona, Síria e Rússia - dois dos maiores alvos das críticas de Annan - lamentaram a renúncia. Em comunicado, a Chancelaria síria disse "sempre ter provado seu total engajamento ao plano de paz". Do lado russo, o presidente Vladimir Putin classificou a crise síria como uma "tragédia". E elogiou Annan.

- É uma pessoa muito respeitável, um diplomata brilhante e um homem muito decente. É realmente uma pena - declarou Putin. - Mas espero que os esforços da comunidade internacional visando ao fim da violência continuem.

As palavras, porém, contrastavam com o posicionamento russo nas Nações Unidas. Além de vetar resoluções contra a Síria por três vezes, a diplomacia de Moscou - assim como as de outros países dos Brics - anunciou um veto a outra tentativa de condenação, ainda que simbólica, no âmbito da Assembleia Geral da ONU.

O documento será levado hoje à plenária para a apreciação e votação dos 193 integrantes das Nações Unidas. O texto foi escrito pela Arábia Saudita e adotado pelos 22 países-membros da Liga Árabe. Mas acabou diluído diante dos temores de que sequer cem votos favoráveis sejam alcançados - o que forçou a retirada do artigo que exigia a renúncia de Bashar al-Assad.

Além dos Brics, Argélia, Argentina e outros sul-americanos também se opuseram.

- É uma resolução não balanceada, que leva em conta apenas um lado - justificou o embaixador russo na ONU, Vitaly Churkin, alegando que os países-autores do texto são os responsáveis por armar a oposição.

A indecisão e a falta de vontade política na arena diplomática contrastam com a determinação de quem trava combates cada vez mais violentos nas ruas da Síria. Somente ontem foram contabilizadas ao menos 130 mortes no país.