Título: Anarquia pelo profeta
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Fonte: O Globo, 22/09/2012, Mundo, p. 38

Protestos convocados por governo do Paquistão saem do controle e deixam 19 mortos.

Embaixadas e consulados americanos e europeus fecharam as portas no mundo muçulmano. Em estado de alerta, França e Tunísia preferiram não correr riscos - ignoraram quaisquer debates acerca da liberdade de expressão e proibiram protestos contra o filme amador americano "Inocência dos muçulmanos" e as caricaturas do profeta Maomé publicadas por uma revista satírica francesa. Mas se a sexta-feira, o dia sagrado do Islã, foi de manifestações pacíficas no mundo árabe, um espírito de anarquia e violência espalhou-se pela Ásia. E sobretudo pelo Paquistão. Ao menos 19 pessoas morreram e mais de 200 ficaram feridas em diversas cidades de um país politicamente instável dono de um arsenal nuclear. E, além disso, fundamental para o sucesso da luta antiterrorismo no Afeganistão, mantendo uma parceria complicada - e marcada pela desconfiança - com os Estados Unidos.

premier pede lei antiblasfêmia

A relação complexa dos EUA com o gigante islâmico de cerca de 180 milhões de habitantes pôde ser vista nos protestos de ontem: embora o presidente Asif Ali Zardari tenha condenado a eclosão de violência e a morte de quatro americanos no consulado em Benghazi, na semana passada, foi o próprio governo que convocou as manifestações. Foi decretado feriado para um "Dia de amor pelo profeta". Críticos de Islamabad afirmam que a tática dúbia - da qual Washington já se queixou diversas vezes - é uma maneira tradicional de escapar de desafios internos, acenar às facções religiosas locais e escamotear a impossibilidade de um governo secular de lidar com problemas que vão da infraestrutura deficiente à presença de milícias extremistas, como o Talibã.

As manifestações, porém, saíram do controle. As maiores cenas de violência ocorreram em Karachi e Peshawar. Além de marchas enfurecidas, gritos de ordem contra os EUA e a Europa e queima de bandeiras americanas, tudo o que poderia simbolizar a cultura ocidental virou alvo. Nada menos que seis salas de cinema foram incendiadas nas duas cidades.

- Nosso coração chora lágrimas de sangue. Podemos tolerar qualquer coisa, menos o desrespeito ao profeta e ao Alcorão - justificou Akbar Saeed Farooqi, porta-voz de uma organização religiosa que ajudou a organizar as manifestações reunindo dezenas de milhares de pessoas.

O primeiro-ministro Raja Pervez Ashraf também tentou se justificar. E pediu, ainda, que as Nações Unidas trabalhem na elaboração de uma lei internacional capaz de proibir a blasfêmia:

- Um ataque ao profeta sagrado é um ataque a 1,5 bilhão de muçulmanos. Portanto, algo inaceitável.

Em Peshawar, o motorista de uma TV local foi morto quando policiais abriram fogo para dispersar a multidão. Em Karachi, lanchonetes de fast food foram alvo da ira popular e, na capital, a fumaça de bombas de gás lacrimogêneo lançadas pela polícia contra a multidão encobriu o centro da cidade. A embaixada do Brasil ficou fechada por motivos de segurança.

Com pelo menos 15 cidades atingidas pela anarquia, o governo pôs o Exército nas ruas. Além de choques violentos, os serviços de internet e telefonia celular foram bloqueados para evitar novas mobilizações - e impedir militantes de usarem os aparelhos para detonar bombas.

hillary e hina: diálogo feminino

A confusão, aliás, ocorreu durante a primeira visita da chanceler paquistanesa, Hina Rabbani Khar, aos EUA. A confiança entre os dois governos fragilizou-se desde 2011, devido à operação americana que matou Osama bin Laden no país. As suspeitas de que a inteligência paquistanesa tenha acobertado milícias extremistas, como a rede Haqqani, e sucessivos erros de aviões não tripulados americanos na fronteira entre Paquistão e Afeganistão complicam a missão da ministra. Ontem, ela foi recebida pela secretária de Estado americana, Hillary Clinton.

- Os últimos 18 meses foram muito, muito difíceis, mas estamos melhor do que podíamos esperar na reconstrução da confiança. Estamos num tempo de oportunidade - disse Hina.

Mais fria, Hillary destacou "a necessidade dos esforços conjuntos de contraterrorismo para assegurar a segurança de americanos e paquistaneses".

Longe da violência dos protestos paquistaneses, outra manifestação chamou a atenção, em Benghazi. Pelo menos 10 mil líbios foram às ruas. Não em protesto às ofensas anti-Islã - mas condenando o terror e pedindo o desmantelamento das milícias do país.