Título: Diálogo marcado
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Fonte: Correio Braziliense, 03/10/2009, Mundo, p. 26

Governo interino e presidente deposto, Manuel Zelaya, aceitam realizar conversas indiretas a partir da próxima semana

Depois de mais de 280 horas de polêmica, recusa ao diálogo, incitação à violência e uso da Embaixada do Brasil em Tegucigalpa pelo presidente deposto, Manuel Zelaya, surgiu ontem uma brecha para o bom senso em Honduras. John Biehl, representante da Organização dos Estados Americanos (OEA), revelou que o líder afastado e o governo interino de Roberto Micheletti concordaram em conversar na próxima semana para buscar uma saída para a crise institucional causada pelo golpe de Estado de 28 de junho. ¿Haverá um pedido de diálogo (¿). Será feito pelo governo em exercício, e a outra parte aceitará. Isso está combinado. Por hora, não deve haver encontro direto¿, afirmou o diplomata.

Segundo Biehl, o diálogo deve começar antes de quarta-feira, quando o secretário-geral da OEA, José Miguel Insulza, chefiará uma missão de chanceleres à capital hondurenha. Até o fechamento desta edição, não havia mais detalhes sobre o processo de negociações. A tendência, segundo Biehl, é que o próprio Insulza cumpra o papel de mediador, assessorado pelos ministros das Relações Exteriores de países da América Central.

Se Zelaya deu uma mostra de flexibilidade, também esboçou incoerência. O presidente deposto por ignorar as leis do país, ao marcar um referendo não vinculante, agora promete esquecer a convocação da Assembleia Constituinte ¿uma manobra para se perpetuar no poder. ¿Estamos prontos para negociar, para o diálogo, mas antes o governo de Micheletti deve suspender as restrições dos direitos civis¿, declarou Carlos Eduardo Reina, líder da Frente Nacional de Resistência contra o Golpe de Estado, que também permanece abrigado na representação diplomática. O ativista lembrou que a desistência da Constituinte é um dos 12 pontos do Acordo de San José, impulsionado por Oscar Árias, presidente da Costa Rica e Prêmio Nobel da Paz. Mas ele assegurou que Zelaya não se responsabilizará caso a própria população decida levar adiante o projeto. ¿É uma aspiração genuína do povo¿, acrescentou.

Uma demonstração de abertura política foi dada ontem por Micheletti(1). O líder interino de Honduras recebeu em seu gabinete uma comitiva de congressistas norte-americanos que haviam pedido ao presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, que parasse de apoiar Zelaya. Segundo a agência de notícias Reuters, antes do encontro, o senador republicano Jim DeMint criticou o Departamento de Estado dos EUA e denunciou uma tentativa de Washington de proibir a viagem à América Central. ¿O apoio cego do presidente Obama e dos democratas a esse ditador em potencial e amigo de Hugo Chávez (mandatário venezuelano) vai impedir membros do Congresso de saberem a verdade em primeira mão¿, alertou o parlamentar.

Tensão

O clima de tensão ainda ronda Tegucigalpa. Na quinta-feira passada, pequenos grupos de simpatizantes de Zelaya entraram em choque com policiais em uma emissora de TV fechada pelo governo interino e, mais tarde, próximo à Embaixada do Brasil. Na entrada da representação, os soldados mantêm inspeções rigorosas ¿ até mesmo bolos levados pela família de Zelaya para celebrar o aniversário da primeira-dama foram cortados em vários pedaços e farejados por cães. Com poderes para coibir protestos e liberdade de expressão, os militares da tropa de choque afugentaram os manifestantes e invadiram dois meios de comunicação.

Diretor da Rádio Globo de Tegucigalpa, David Romero afirmou esperar que a situação melhore a partir de hoje. ¿Ontem, Micheletti se reuniu com o ministro da Justiça e saiu sem dizer nada. Mas não há nenhum indício de mudança substancial na crise¿, comentou o jornalista, que também criticou a visita de uma comissão de congressistas brasileiros (leia matéria ao lado). ¿Os brasileiros só se reuniram com os setores golpistas ¿ o Congresso Nacional, o Supremo Tribunal e o senhor Micheletti¿, atacou. Para o estudante de jornalismo Roni Martínez, assistente de Romero, disparou: ¿Não pode haver diálogo com repressão, se não houver liberdade¿.

1 - Denúncias de mortes Sob as costas de Micheletti pesariam pelo menos 12 mortes, denunciou ontem a organização não governamental Comitê de Familiares de Detidos Desaparecidos (Cofadeh). Berta Oliva, presidenta da entidade humanitária, garantiu que a maioria das vítimas morreu nas mãos da polícia ¿ outros dois assassinatos são investigados. A Cofadeh também recebeu dezenas de denúncias sobre hondurenhos feridos pelas forças de segurança, entre eles o candidato presidencial independente, Carlos H. Reyes. Ao menos 96 manifestantes teriam sido condenados em tribunais.

O jantar da discórdia

O grupo de deputados brasileiros que viajou a Honduras para acompanhar a crise política no país enfrentou conflitos internos, na noite de quinta-feira, ao receber um convite do presidente interino, Roberto Micheletti, para um jantar. Os deputados Ivan Valente (PSol-SP) e Janete Pietá (PT-SP) se recusaram a comparecer ao encontro, ocorrido na sede da presidência, enquanto os outros quatro parlamentares que integram a comissão se reuniram com Micheletti.

O Brasil não reconhece o governo de Honduras e as relações diplomáticas entre os países estão paralisadas. Por esses motivos, Valente criticou Cláudio Cajado (DEM-BA), Bruno Araújo (PSDB-PE), Maurício Rands (PT-PE) e Raul Jungmann (PPS-PE), coordenador da missão, por terem ido ao jantar oferecido pelo presidente interino. ¿Isto não estava combinado. Achamos que encontrar o Micheletti poderia ser entendido como uma legitimação do governo golpista¿, explicou o deputado.

Rands discordou de Valente e garantiu que não descumpriu a orientação do governo brasileiro de se manter distante das autoridades interinas hondurenhas, de modo a não legitimá-las. ¿Nós viemos dialogar. Deixamos claro que não concordamos com o governo interino.¿ Mas o parlamentar filiado ao PSol não se mostrou convencido das alegações de Rands e chamou os colegas de ¿ingênuos¿, uma vez que todos haviam combinado de não entrar em contato ¿com qualquer pessoa do governo Micheletti¿.

Segundo Valente, Jungmann informou aos deputados sobre o convite feito pelo presidente interino logo após a visita da comitiva à embaixada do Brasil, onde houve o encontro com o presidente hondurenho deposto, Manuel Zelaya. O parlamentar acrescentou que o grupo passou cerca de três horas na embaixada e pôde perceber que ¿Zelaya está mais tranquilo¿. No entanto, ¿ainda há afrontas à embaixada, como holofotes ligados em direção ao prédio, sistemas de som ligados, bloqueio de linha de celular e policiais mascarados ao redor da embaixada¿, lamentou.

Jungmann afirmou que Micheletti e Zelaya asseguraram estar dispostos a solucionar a crise em Honduras por meio de conversas. Ele comemorou a promessa feita pelo Parlamento hondurenho de pedir ao chefe de Estado interino que estenda o prazo de 10 dias para que o Brasil defina a situação de Zelaya.