Título: Abaixo o sigilo
Autor: Berlinck, Deborah; Eichenberg, Fernando
Fonte: O Globo, 04/03/2013, Mundo, p. 20

Cardeais iniciam hoje em Roma a reunião fundamental que vai prepará-los para a escolha do futuro Papa. A atmosfera do encontro - conhecido como congregação geral - é espiritual, segundo os participantes, e em nada lembra o bate-boca de um Parlamento italiano. Mas desta vez, sob o choque do mais dramático gesto da História recente da Igreja - a renúncia de um Papa -, os cardeais chegam com uma cobrança: querem saber o conteúdo do dossiê secreto entregue ao Papa Bento XVI, pouco antes da renúncia, relatando problemas comprometedores à imagem já desgastada da Igreja. E os nomes dos responsáveis.

O cardeal Geraldo Majella, arcebispo emérito de Salvador, veterano na participação em conclaves, foi incisivo: não são apenas os brasileiros que querem saber.

- A gente quer saber. Todo mundo está interessado em saber. Por que não foi dado até agora? Eu também estou querendo saber o que tem nesse dossiê.

Outro cardeal, Raymundo Damasceno, arcebispo de Aparecida e presidente da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), também cobrou:

- Por que o cardeais que estão reunidos agora, que são conselheiros mais próximos do Papa e que vão votar no Papa, não podem ter essas informações? Acho que é mais do que justo e necessário que os cardeais tenham as informações sobre o conteúdo do dossiê.

influência no conclave

Ontem, pela primeira vez em oito anos, não houve missa na Praça de São Pedro. Horas antes da abertura do encontro de cardeais, marcado para as 9h30m de Roma (4h30m) de Brasília, muitos deles continuavam sem saber se o Vaticano liberaria ou não a informação antes do conclave, ou seja, antes da reunião secreta e fechada de 115 cardeais para a escolha do próximo Pontífice. Circula o rumor de que os três cardeais que escreveram o dossiê secreto estariam preparando um resumo para apresentar nas discussões. Ou passariam discretamente informações a alguns cardeais. Mas ninguém confirma ou desmente.

- Não ouvi falar nada até agora, mas pode ser que isso esteja previsto, porque não fomos só nós. Outros cardeais já se manifestaram sobre a necessidade de conhecer o conteúdo essencial do informe - disse o cardeal Damasceno.

O teólogo James Weiss, do Boston College, descreve um clima de desconfiança entre os cardeais:

- Desta vez, os relatórios vão ser apresentados pelo camerlengo, que é o ex-secretário de Estado Tarcisio Bertone, que todos acreditam ser responsável pelos problemas. Eles não sabem se Bertone vai tentar fazer com que os problemas pareçam menores do que são.

O cardeal Damasceno não descarta a hipótese de que ele próprio peça as informações do documento, caso outros não o façam.

- Pode ser que eles mesmos (dirigentes das congregações) tomem a iniciativa de nos dar as informações - disse.

O monsenhor Antonio Luiz Catelan, assessor da Comissão da Doutrina da Fé da CNBB, acha que, "dependendo do problema revelado", o dossiê pode influenciar na escolha do Pontífice:

- Se ele incide em problemas administrativos, vão querer um candidato com dotes administrativos para Papa. Se são questões doutrinais, vão querer um Papa mais teólogo.

Mas Catelan minimiza a gravidade do conteúdo do dossiê, dizendo que tem a convicção de que nenhum cardeal está implicado em denúncias: seus nomes podem constar do documento, mas como pessoas que prestaram depoimentos.

- Conhecendo os cardeais, com quem convivo, posso dizer que não há cardeal envolvido - garantiu.

Além das revelações do dossiê secreto, as reuniões preparatórias desta semana vão decidir uma data importante: o início do conclave, quando cardeais ficarão trancados e incomunicáveis na Capela Sistina do Vaticano, em meio aos afrescos dos maiores artistas da Renascença, como Michelangelo, Rafael, Bernini e Botticelli. A aposta em Roma é que o conclave aconteça em torno dos dias 10 e 11. O porta-voz do Vaticano, Federico Lombardi, garantiu que para tomar tal decisão é preciso que todos os 115 cardeais com direito a voto estejam presentes - o que ainda não é o caso.

A reunião de hoje será aberta pelo cardeal argentino José Saraiva Martins. Em entrevista ao jornal italiano "Il Messaggero", ele explicou que estas reuniões preparatórias para o conclave têm como objetivo "nos ajudar a focar nos principais problemas da Igreja em relação à sociedade contemporânea, o declínio dos fiéis, as vocações". Ele disse ainda que as discussões serão muito democráticas e que cada um pode tomar a palavra e intervir livremente, até mesmo sobre o caso VatiLeaks, de vazamento de dados.

Vários temas podem surgir nos debates das congregações. O cardeal Majella, por exemplo, gostaria de uma discussão sobre a formação dos sacerdotes, onde ele vê um grande problema: homens estão procurando o sacerdócio como status, uma carreira, e se esquecendo da dimensão que deveria contar mais - a espiritual. Isso vai na mesma linha de Bento XVI, que se queixou do carreirismo na Igreja.

- Vê-se uma procura pelo sacerdócio, mas como um status. Sobretudo nas regiões mais carentes, fulano chega de pé no chão e depois já com o terno todo bonito. A formação tem sido um pouco superficial - disse Majella.

Já para o cardeal Damasceno, as discussões nestas reuniões podem ajudá-lo a escolher seus candidatos a Papa.

- Seria muito interessante ouvir representantes de cada continente, ouvir um pouco de como está vivendo a Igreja nesses locais, os desafios que ela está enfrentando. Isso daria uma visão de mundo fundamental - opinou.

Enquanto os religiosos debatem o futuro da Igreja, o cardeal Keith O"Brien admitiu um velho problema - menos de uma semana depois de ter sido afastado do comando da Igreja Católica da Escócia: que era culpado de má conduta sexual. Ele prometeu ficar longe da vida pública da Igreja e pediu perdão. Ele tinha sido acusado de cometer assédio sexual nos anos 1980.

- Houve momentos em que minha conduta sexual ficou abaixo dos padrões esperados para um padre, arcebispo ou cardeal - admitiu.