Título: Justiça a passos lentos
Autor: Rizzo, Alana; D'Elia, Mirella
Fonte: Correio Braziliense, 17/10/2009, Política, p. 2

Famílias de vítimas colecionam relatos de impunidade aos mandantes de crimes contra magistrados

Não é só a falta de segurança que assombra a rotina dos juízes brasileiros. Muitos crimes praticados contra magistrados não são sequer conhecidos pela população. Outros acabam caindo na vala comum do esquecimento ¿ aumentando ainda mais a pilha de processos que abarrotam os tribunais do país sem solução. Acostumados a tomar decisões que afetam o futuro de milhões de pessoas, os juízes acabam se tornando vítimas da mesma lentidão da Justiça brasileira. Quando os crimes chegam a ser desvendados, os mandantes quase sempre terminam impunes.

No Espírito Santo, os pistoleiros Odessi Martins da Silva e Giliarde Ferreira foram condenados, respectivamente, a 25 anos e oito meses e a 24 anos e seis meses de prisão por executar o juiz Alexandre Martins, que combatia o crime organizado no estado. Por intermediar a contratação dos atiradores, os sargentos da PM Heber Valêncio e Ranilson Alves da Silva pegaram, respectivamente, 20 anos e três meses e 15 anos de cadeia. Em liberdade, os acusados de serem mandantes do crime aguardam julgamento. São eles o juiz Antônio Leopoldo, o ex-policial civil Cláudio Luiz Andrade Baptista e Walter Gomes Ferreira, coronel reformado da PM.

Em Goiás, a família do juiz Sued Dias da Silva, assassinado em 1987, desistiu de acompanhar o rumo do processo. ¿Os pistoleiros chegaram a ser presos e fugiram. Os mandantes nunca foram detidos. Apesar de condenados, nunca cumpriram pena¿, lamentou a filha do magistrado, Renata, que tinha só dois anos quando perdeu o pai.

Casos corriqueiros Na pequena Itambacuri, a 415 Km de Belo Horizonte (MG), a semana apenas começava quando o juiz Cláudio Schiavo Cruz, de 33 anos, recebeu em sua sala o carcereiro da cadeia do município. Ele trazia a notícia de que William Amaral, de 31 anos, preso dias antes por porte ilegal de armas, ganhara a liberdade e estava na cidade para matar alguém. William, conhecido como Giovani Cigano, era, na verdade, um pistoleiro profissional. Preocupado, Schiavo decretou a prisão preventiva do sujeito. Dois dias depois, soube quem era o alvo do bandido: ele próprio. O preço do serviço: R$ 100 mil.

O motivo da contratação macabra era uma decisão do magistrado, em que decretara semanas antes a prisão de oito suspeitos de envolvimento com o assassinato de duas pessoas da mesma família, por causa de herança, em 2006. Os acusados respondiam ao crime em liberdade, mas tentavam coagir as testemunhas. Em 2008, o pistoleiro foi acompanhado de perto por agentes da inteligência da Polícia Militar e do Ministério Público. Descobriu-se que metade do pagamento pelo serviço já havia sido paga e que a outra metade estava guardada na casa de uma das mandantes.

O pistoleiro foi localizado e preso em Mantenópolis (ES). Hoje está solto por decisão da Justiça. Um dos oito mandantes do crime responde ao processo em liberdade e, curiosamente, mora hoje em frente à casa do juiz. Magistrados e promotores chegaram a fazer um ato de desagravo ao magistrado.

Schiavo evita falar sobre o plano de matá-lo, mas defende a organização urgente de um aparato de segurança para os magistrados. ¿Esses casos estão se tornando corriqueiros e as medidas de proteção não podem vir depois. É fácil atentar contra a vida de um juiz e de sua família¿, afirma.

Mais de um ano depois do episódio, ele ainda conta com escolta ostensiva no fórum e segurança velada. Diz conseguir dormir à noite, mas fica preocupado quando não está perto da mulher e dos dois filhos, de um e quatro anos. Até hoje não se arrisca a ficar em casa nos fins de semana. Passa os sábados e domingos na casa de parentes.

Em nome do pai

¿Me sinto injustiçada. Passei a vida me perguntando se vale a pena ser correta¿. É assim que Renata Souza Dias, 24 anos, resume o que sente com a violenta perda do pai. Ela tinha dois anos quando o juiz Sued Dias da Silva foi morto a tiros em 1987, em Mara Rosa, norte de Goiás. ¿Aceitaria qualquer sofrimento para ter a oportunidade de conviver com ele¿, diz, emocionada.

Jovem magistrado, Sued trabalhava em Colinas, a cerca de 260 Km de Palmas ¿ hoje o município pertence a Tocantins ¿ quando passou a ser perseguido. ¿Ele ouvia falar que não era para mexer com determinados fazendeiros que tinham muito dinheiro. Mas queria fazer justiça e resolveu desengavetar processos que estavam parados. Criou inimizades e desafetos¿.

Mas não recuou. ¿Ele dizia que não era bandido para fugir¿. Uma noite, tenso, pegou a estrada de madrugada rumo a Mara Rosa para tirar férias. Dirigiu o quanto pôde e não dormiu nem mesmo quando encostou o carro na beira da estrada para descansar.

A distância não o fez escapar da morte. Foi executado a tiros na varanda da casa dos sogros. ¿Minha mãe estava na rua e quando voltou tinha um monte de gente na porta gritando. Ela já sabia¿.

Renata e os dois irmãos estudaram direito. O mais velho recusa-se a falar sobre a morte do pai. E diz que vai passar no concurso da magistratura, mas não tomará posse. Uma espécie de protesto. Renata pensa diferente. ¿Quero seguir a carreira de juíza e fazer justiça à memória dele. (MD)