Título: Educação repercute no acesso à Justiça
Autor: D'Elia, Mirella; Rizzo, Alana
Fonte: Correio Braziliense, 03/11/2009, Política, p. 8

Pesquisa realizada pela Associação dos Magistrados do Brasil mostra que há uma relação direta entre o índice de escolaridade dos cidadãos brasileiros e a quantidade de pessoas que procuram os tribunais para brigar pelos direitos

São Paulo ¿ A deficiência na formação educacional influencia diretamente o comportamento do cidadão na hora de procurar a Justiça para batalhar por seus direitos. Pesquisa divulgada pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) mostra que quanto menor o número de analfabetos, maior é a proporção de ações que chegam aos tribunais. Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul, São Paulo, Minas Gerais e Santa Catarina, que lideram o ranking de novos processos, estão entre os campeões no combate ao analfabetismo. Roraima, Maranhão, Alagoas, Piauí e Pará, que estão entre os estados brasileiros com os maiores índices de moradores que não sabem ler nem escrever, registram menores indicadores de procura pela Justiça.

¿Você pode supor que a alfabetização implica maior conhecimento dos direitos. As pessoas procuram mais a Justiça. Por outro lado, nos estados mais pobres, as pessoas entram com menos ações. É um retrato das condições socioeconômicas do país¿, afirma a pesquisadora Maria Tereza Sadek, que coordenou o estudo, divulgado na última quinta-feira, em São Paulo.

Apesar de estar entre as unidades da federação com maior número de processos novos, o Distrito Federal também ocupa posição de destaque no levantamento com foco na desigualdade social. Segundo a pesquisa e com base em indicadores do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), a capital do Brasil é a segunda pior no índice que mede o grau de desigualdade de acordo com a renda domiciliar. Só perde para o Piauí. Em outras palavras, o mesmo local que abriga uma população consciente dos direitos reserva espaço para um abismo social separando ricos e pobres.

Retrato Moradores da Estrutural, os irmãos Marinalva e Francisco Natividade refletem essa diferença. Os dois não estudaram e sobrevivem do trabalho no lixão. Casada e mãe de quatro filhos, Marinalva carrega há 10 anos uma dúvida. O pai, que era funcionário público, foi assassinado e, na época, disseram a ela que a família teria direito a pensão. ¿Nunca consegui orientação¿, reclama, lembrando que uma vez um advogado lhe pediu para recolher a papelada para ajudá-la. ¿Nem sei por onde começar e ele sumiu¿.

Presidente da AMB, Mozart Valadares defende o fortalecimento da Defensoria Pública para atender melhor à população carente. ¿O resultado da pesquisa mostra que as pessoas mais esclarecidas reivindicam mais os direitos e têm mais noção de cidadania. Infelizmente, o Estado não oferece ainda uma Defensoria Pública que atenda a todos os pleitos dos mais pobres¿, diz.

O DF aparece em terceiro lugar no índice de casos novos e ocupa a segunda posição no ranking de menos analfabetos. Já o Pará é o local onde a população menos entra com ações em todo o país, segundo o levantamento. No entanto, foi considerado uma exceção pela pesquisadora: o estado não tem percentual expressivo de analfabetos, se comparado com outras unidades da Federação.

Defensoria tem o ¿cobertor curto¿

Luiz Ribeiro

A história de Carmelita Lopes Guimarães é igual à de vários brasileiros analfabetos que desconhecem a Justiça. Nasceu na zona rural de São João da Ponte, norte de Minas Gerais, e só foi tirar certidão de nascimento aos 25 anos. Teve sete filhos e nenhum tem o nome do pai no documento. O antigo companheiro Jorge Ferreira de Souza, que morreu há 17 anos, não registrou os meninos. Para a Justiça, este é um caso simples. Basta entrar com ação de investigação de paternidade. Carmelita desconhecia essa possibilidade: ¿Não procurei a Justiça porque não sabia que poderia fazer isso¿, lamenta.

A defensora pública Maurina Fonseca Mota afirma que a falta de informação é comum. ¿Somente depois de muita conversa é que essas pessoas ficam sabendo que podem requerer os direitos na Justiça¿, afirma. ¿No Norte de Minas, parte mais carente do estado, a situação é mais difícil porque somente três cidades da região (Montes Claros, Pirapora e Janaúba) têm defensoria pública¿, observa. O juiz Isaías Caldeira Veloso, da Segunda Vara Criminal de Montes Claros, diz que 80% dos presos na cidade não têm advogado constituído. ¿Muitos ficam sem assistência jurídica porque suas famílias, além da falta de condições financeiras, não têm informação e não sabem que podem recorrer à Defensoria Pública.¿

Gigantismo e morosidade nos estados

Porta de entrada do cidadão comum no Poder Judiciário, a justiça estadual concentrou a maioria dos 70 milhões de processos que entraram nos tribunais brasileiros em 2008. Foram 12 milhões de casos novos só no ano passado ¿ o maior número registrado em todos os ramos pesquisados pela AMB. Ela também tem a maior parte dos juízes em atuação no país: 11 mil ao todo. São magistrados que, em geral, trabalham mais horas que os colegas.

Por seu gigantismo, a instituição registrou a maior despesa por habitante no ano passado, uma média de R$ 100,56. Ao mesmo tempo, no entanto, apresentou o menor crescimento de gastos entre 2004 e 2008 e ganhou menos juízes no período. O tamanho exagerado tem reflexos na morosidade. Nos últimos quatro anos, de cada cem processos que chegaram aos tribunais, 80 deixaram de ser julgados.

E é exatamente essa fama de ser demorada e burocrática que levou o desempregado José Pereira da Silva, 35 anos, a desistir de procurar pelos direitos. O cearense, que mora no Distrito Federal há mais de duas décadas, diz que pagou IPTU durante meses sem dever. ¿Fui informado que o governo tinha liberado o pagamento. Fui à Receita e não consegui as informações corretas. Preferi deixar para lá. Tenho certeza de que vou esperar 10 anos para receber de volta¿, afirma. O único contato que ele tem com a Justiça é o pagamento da pensão alimentícia no valor de R$ 120 para os dois filhos. (MD e AR)

Três perguntas para Heitor Hui/AE - 10/9/01

Maria Tereza Sadek, autora da pesquisa Justiça em números: novos ângulos, encomendada pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB)

O Judiciário cresceu. Ele se modernizou também? Hoje temos 15 mil juízes. É necessário dar uma arrumada na casa que não pode ser feita com os mesmos elementos que o Judiciário tinha antes. como se a máquina pública fosse programada para atender cinco pessoas e de repente tivesse que atender cinco milhões. Mas não dá para dizer que a culpa é do juiz. As faculdades de direito, por exemplo, não têm disciplinas voltadas para a administração. A maior parte delas, na verdade, tem as mesmas matérias da década de 1950, enquanto o hall de questões que os magistrados têm que examinar é muito amplo. O mundo mudou significativamente. Temos de acompanhar.

A pesquisa concluiu que é preciso melhorar a gestão dos tribunais brasileiros, pois não bastam condições materiais, mais juízes e maior carga de trabalho para acabar com a morosidade. A Justiça brasileira gasta mal? Ela gerencia mal os recursos que tem. Está tudo muito mal administrado. Não está muito claro como se estabelecem as prioridades. Falta um planejamento interno e administrar melhor os recursos que, em alguns casos, são muito escassos.

O Conselho Nacional de Justiça está conseguindo melhorar essas deficiências? O CNJ deu a partida: fez o diagnóstico, o que era essencial. Hoje, podemos dizer que temos dados melhores do que em qualquer fase do passado e do que todos os países da América Latina. Os dados são incompletos. Nem sempre você pode dizer que são consistentes, embora se saiba que eles são de responsabilidade dos tribunais. Perto do que tínhamos, o que nós conseguimos é muito. Mas, perto do que necessitamos, pode ser considerado pouco.