Título: Pedra no caminho
Autor: Nunes, Vicente
Fonte: Correio Braziliense, 31/12/2009, Economia, p. 9

Deficit em transações correntes deverá mais do que dobrar em 2010. Manter o câmbio flutuante é a saída para evitar descontrole

Temos feito uma série de desonerações. Foi como se desvalorizássemos o real¿ Nelson Barbosa, secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda

Com a forte retomada do crescimento econômico, puxado pelo consumo doméstico, o Brasil terá de conviver com rombos cada vez maiores nas contas externas. Já em 2010, quando o país escolherá o próximo presidente da República, o deficit em transações correntes, que engloba comércio, rendas e serviços, deverá mais do que dobrar frente ao ano anterior ¿ e aumentar consistentemente nos anos seguintes. A estimativa mais conservadora, feita pelo Banco Central, aponta para um buraco de US$ 40 bilhões. A projeção mais pessimista, elaborada pelo Bradesco, prevê uma deficiência de US$ 64 bilhões.

Por trás desses números está a taxa de câmbio. Com o dólar cada vez mais barato, as importações tenderão a subir muito ¿ o que ajudará a manter a inflação sob controle ¿ e os brasileiros, a ampliarem os gastos em viagem ao exterior. Para completar, as multinacionais instaladas do país vão lucrar mais e, com o real em alta, ampliar as remessas de lucros e dividendos. De outro lado, o dólar fraco diminuirá o poder de competição dos produtos de maior valor agregado exportados pelo país. As receitas com as vendas de mercadorias crescerão menos do que o esperado.

À primeira vista, reconhece o economista Felipe França, do Banco ABC Brasil, o quadro assusta. ¿Foram deficits crescentes nas contas externas que empurraram o país para sucessivas crises cambiais¿, lembra. ¿Mas a situação hoje é completamente diferente. O Brasil tem reservas internacionais crescentes, é credor internacional em dólar e vai receber, nos próximos anos, um volume maciço de investimentos estrangeiros. Ou seja, não faltarão recursos para o financiamento dos rombos nas transações correntes¿, acrescenta.

O Brasil tem ainda outro instrumento importante para corrigir possíveis distorções no mercado: o câmbio flutuante. ¿À medida que o deficit nas contas externas for aumentando, a tendência é de os preços do dólar subirem. Esse movimento de valorização da moeda americana frente ao real reduzirá, naturalmente, o apetite pelas importações, as remessas de lucros e o ímpeto do brasileiro de viajar para fora do país¿, diz Zeina Latif, economista-chefe do Banco ING.

Cenário Mas, apesar da tranquilidade com que avaliam o comportamento das contas externas, os economistas alertam que o próximo governo não pode ficar de braços cruzados. Como não há perspectiva de mudanças significativas nos preços do dólar ¿ o Banco Credit Suisse vê a divisa cotada a R$ 1,60 em 2010 ¿, já que a economia americana permanecerá patinando por um bom tempo, o câmbio continuará favorecendo os importadores e jogando contra a produção destinada à exportação ¿ os mais críticos, como o economista João Paulo de Almeida Magalhães, já veem um processo de desindustrialização do Brasil em andamento e defendem um dólar variando entre R$ 2,60 e R$ 2,80.

Carlos Thadeu Filho, economista-chefe da SLW Asset Management, vê essa tese como exagero. E dispara: ¿O único jeito de o governo corrigir os desequilíbrios será por meio da redução de impostos. As empresas poderão compensar o dólar fraco exportando menos tributos. E o jogo com os importadores estará empatado¿. O secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, Nelson Barbosa, assegura que a administração Lula já segue essa receita. ¿Tanto que temos feito uma série de desonerações. Foi como se desvalorizássemos o real¿, afirma.

Na opinião de Barbosa, o impacto das medidas adotadas pelo governo federal poderia ter sido maior se o corte de impostos tivesse sido acompanhado pelos estados. ¿Infelizmente, isso não aconteceu¿, acrescenta. No entender do secretário será difícil mudar esse quadro no próximo governo, seja Dilma Rousseff (PT) a eleita em 2010, seja José Serra (PSBD). ¿É difícil construir um consenso. Se 26 unidades fecham um acordo e um não, esse último acaba se dando bem¿, frisa. ¿Mas o desafio está colocado.¿

Para o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, o debate sobre o câmbio vai além. ¿É verdade que a reforma tributária permitirá a redução da carga de impostos, mas será preciso dar um choque de competitividade no setor produtivo, com a maior qualificação da mão de obra e a melhoria da infraestrutura e do ambiente de negócios¿, diz. Ele ressalta ainda que o Brasil, pelo sucesso que mostrou ao sair mais forte da crise mundial e por eventos importantes como a Copa do Mundo de 2014 e a Olimpíada de 2016, receberá um volume maciço de investimentos estrangeiros, o que tenderá a depreciar ainda mais o dólar frente ao real.

¿Por isso, vamos atualizar a lei cambial do Brasil, para tornar mais flexíveis as saídas de recursos. Temos que estimular as exportações e as importações, o comércio exterior como um todo¿, assinala o presidente do BC. A ideia, por exemplo, é permitir que os fundos de investimentos possam aplicar recursos livremente no exterior. E, no final da etapa de liberação, autorizar a abertura de contas em dólar pelos brasileiros.

Exportações No entender do presidente da Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex), Alessandro Teixeira, com ou sem mudança significativa na taxa de câmbio, as exportações brasileiras serão beneficiadas nos próximos anos com a recuperação da economia mundial. Ele afirma que, independentemente do tamanho das empresas, há um interesse cada vez maior em vender produtos para o exterior. E o melhor de tudo é que está havendo um processo de profissionalização expressivo nas companhias. ¿Ninguém mais vai para um determinado lugar porque ouviu falar que é bom. Vai depois de um amplo estudo sobre o potencial de cada país¿, destaca.

Teixeira acrescenta ainda que o fato de a China ter se tornado o maior parceiro individual do Brasil no comércio internacional está servindo para quebrar tabus. ¿Temos que deixar de ter medo da China e ver aquele mercado mais como um desafio do que uma ameaça. Isso também vale para a conquista de novos mercados¿, enfatiza. A seu ver, o Brasil deve se mirar na Alemanha, o maior país exportador do mundo. A confiança do presidente da Apex no aumento das exportações é importante, pois dará um fôlego a mais ao próximo governo para lidar com os deficits crescentes nas contas externas. Como a história já mostrou, rombos por um longo período não são recomendáveis, pois aumentam a dependência do país por capital estrangeiro.