Título: Um acordo promissor para pacificar a Bolívia
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 23/10/2008, Opinião, p. A12

Após chegarem à beira da ruptura institucional, oposição e governo bolivianos costuraram um acordo para a votação da nova Constituição que pode garantir uma trégua no clima de conflito permanente instalado no país. Após batalhas de rua entre os partidários do presidente Evo Morales e os das províncias da "meia-lua", a banda rica da nação, que pregam maior autonomia, houve concessões suficientes de ambos os lados para que se possa voltar à normalidade política.

A Assembléia Constituinte aprovou uma proposta estatizante e, nela, os partidários do governo se recusaram a sancionar propostas da oposição. Sem maioria de dois terços para a votação do texto, o Movimento ao Socialismo e outros adeptos de Morales mudaram as regras do jogo no meio do caminho, de forma truculenta. Pelas regras estabelecidas, além dos dois terços era necessária a aprovação ponto a ponto. Foi esdrúxula a sessão que aprovou a proposta da nova carta constitucional. O local de votação foi mantido em segredo para que os representantes da oposição não comparecessem. Os que compareceram encontraram uma barreira de milhares de manifestantes para impedir sua entrada. Os 411 artigos foram aceitos em bloco.

As questões institucionais mais importantes, que deveriam ser resolvidas pelo novo pacto que emergirá da Constituição, são o grau de autonomia das províncias e das comunidades indígenas, que terão uma Justiça própria, e o direito de propriedade da terra, além dos mecanismos de revisão da própria Constituição. Outros temas explosivos, como a definição do tamanho de latifúndio para a reforma agrária, já é objeto de plebiscito exclusivo.

O compromisso político que pôs fim a uma imprevisível espiral de violência guarda as marcas da improvisação legal. Depois de o governo dar um golpe na Constituinte e se livrar do bloqueio oposicionista, reconheceu a força das mobilizações dos Estados por autonomia. Novamente diante de uma Câmara cercada por mais de 100 mil manifestantes, os congressistas revisaram pelo menos uma centena de artigos, que limitaram razoavelmente a virtuais arbitrariedades estatais.

Os Estados bolivianos terão mais autonomia, com direito ao uso das receitas fiscais próprias e à formação de Assembléias Legislativas. A expropriação para fins de utilidade pública foi bastante restringida em relação à proposta original. Ela não se aplicará a imóveis urbanos e, no caso de terras no campo, terá de ser aprovada por lei e feita com indenização justa. A desapropriação de terras só ocorrerá no caso de elas serem improdutivas. Essa questão se liga à decisão plebiscitária sobre a definição de latifúndio - 5 mil ou 10 mil hectares -, mas seja qual for o resultado, não terá caráter retroativo. Essa talvez tenha sido a concessão crucial do governo Morales. O tamanho das propriedades atual não poderá ser mexido. Dependendo da data de aquisição da propriedade, haverá latifúndios ou não - isto é, só haverá limites após a promulgação da nova Carta, que irá a referendo em 20 de janeiro de 2009.

Houve acordos importantes sobre temas mais diretamente políticos. Para mudar a Constituição será preciso o apoio de dois terços dos congressistas, e não maioria simples, que daria ao governo as chance de mudar o que quisesse a seu bel-prazer. E, apesar de sua grande popularidade - dois em cada três bolivianos deram sua chancela a sua continuidade na Presidência - Evo Morales amputou o período potencial de seu mandato em quatro anos. Isto é, poderá concorrer à reeleição em dezembro de 2009, mas não se candidatar mais uma vez. O atual mandato de Morales, antes da nova Constituição, não contaria para efeitos de reeleição, mas o presidente abriu mão disso.

Há boas bases, com concessões mútuas relevantes, para garantir alguma tranqüilidade institucional no médio prazo. A oposição não está unida e boa parte dos líderes das províncias não gostaram do acordo. A perspectiva de batalhas políticas que deixam ao largo o Congresso e se resolvem nas ruas, que estava se tornando uma perigosa rotina, ficará arquivada por algum tempo - quanto tempo é impossível saber em um país tão imprevisível como a Bolívia.