Título: Sem desacelerar
Autor: Fleck, Isabel
Fonte: Correio Braziliense, 14/02/2010, Mundo, p. 18

Diplomacia

Último ano do segundo mandato de Lula deve contrariar tese de que governos de saída pisam no freio na política externa

Ao contrário do que normalmente se vê em um último ano de governo ¿ e em um ano eleitoral ¿, 2010 será bastante movimentado para a política externa brasileira. Em janeiro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva já enfrentou o primeiro grande desafio, ao ter que lidar com uma tragédia sem precedentes no Haiti, país onde o Brasil abraçou, ainda no seu segundo ano de governo, um trabalho de paz fundamental para sua visibilidade internacional. No início de fevereiro, foi a vez de rebolar para defender o diálogo com o Irã, cujas manobras em relação ao programa nuclear despertam a preocupação entre as potências ocidentais. Nos próximos 10 meses, além de não desviar a atenção desses dois assuntos, Lula deverá ainda se concentrar em visitas importantes, como a do presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, provavelmente no segundo semestre, e nas já confirmadas viagens ao Oriente Médio e à América Central.

Na primeira tarefa, a resposta rápida no Haiti, que incluiu não só o envio imediato de mantimentos e de ajuda, mas a presença de autoridades brasileiras, como o ministro da Defesa, Nelson Jobim, logo nos dias seguintes ao terremoto, foi importante para o Brasil. Os elogios vindos de diferentes governos à atuação dos brasileiros mostra que o país ganhou ainda mais projeção no cenário internacional ¿ e, com isso, mais um ponto a favor em sua constante busca por um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Entretanto, no mesmo Conselho, onde o país assumiu um assento provisório neste ano, o Brasil é um dos únicos a se opor às sanções contra Teerã.

As duas demandas, que não estavam programadas, demonstram o desafio que a diplomacia Lula enfrentará em seu último ano. ¿A cena internacional é dinâmica e pode apresentar fatos novos, diante dos quais o Brasil terá de se posicionar¿, alerta Rubens Barbosa, embaixador em Washington entre 1999 e 2004. Para ele, no entanto, as prioridades do Brasil já estão colocadas ¿ ¿integração regional, Mercosul, negociações comerciais, relações com Argentina e com a China¿ ¿ e nada deve ser acrescentado, a menos que ¿acontecimentos não esperados obriguem o governo a reagir¿. Barbosa diz acreditar que não vai haver nada de novo no último ano do presidente Lula. ¿A única mudança será no tom, por questões eleitorais¿, opina Barbosa, que aposta em uma ¿radicalização no discurso¿. ¿Ficará mais nacionalista, mais antiamericano, com o objetivo de se contrapor às criticas crescentes¿, completa.

Para o diplomata e sociólogo Luiz Felipe Lampreia, que foi chanceler entre 1995 e 2001, no governo de Fernando Henrique Cardoso, a proximidade das eleições pode, de fato, ter efeito sobre a política externa. ¿Talvez a guinada para a esquerda percebida em 2009, com a aproximação do Irã e em outras situações, possa se acentuar este ano, porque a política externa vem sendo usada como contraponto à política econômica, mais conservadora¿, observa o ex-chanceler.

Se as eleições influenciarão a diplomacia, essa também deverá ter mais espaço do que o de costume na corrida presidencial, acredita Lampreia. ¿As eleições no Brasil não incluem política externa na lista dos itens polêmicos. Mas talvez isso agora aconteça, porque a política externa está mais ideológica e pode vir a se tornar um item de discussão por parte da oposição, como foi no caso do ingresso da Venezuela no Mercosul.¿

O professor da Universidade de Brasília (UnB) José Flávio Sombra Saraiva concorda que a política interna vai acabar ¿contaminando¿ a política externa neste ano eleitoral e que a relação do Brasil com países considerados ¿estranhos¿, como Irã e Venezuela, certamente será utilizada pela oposição. Ele, contudo, acredita que a possível candidata do governo, Dilma Rousseff, também poderá aproveitar o ¿status internacional¿ adquirido durante o governo Lula a seu favor.

Críticas O diplomata Roberto Abdenur, que foi embaixador nos Estados Unidos entre 2004 e 2007, acredita que, apesar de não haver expectativa de mudanças na linha seguida pelo Itamaraty nos últimos sete anos, os próximos meses poderiam servir para aparar algumas arestas deixadas pela chamada política Sul-Sul. ¿A prioridade para a política externa no último ano deveria ser um cuidadoso reparo de certos erros ¿ como a forçada introjeção da Venezuela de Chávez no Mercosul, a tendência a um excesso de protagonismo em algumas situações e o debilitamento de nossa candidatura ao Conselho de Segurança pela falta de comedimento em determinadas iniciativas, como o convite feito a Ahmadinejad¿, afirma Abdenur.

Saraiva, porém, vê resultados positivos na aproximação do Brasil com países do Sul. ¿A diplomacia brasileira usou a plataforma do Sul para afirmar os interesses nacionais no mapa global. Nem Lula e nem Amorim foram contaminados pela ilusão de mudar a ordem mundial¿, afirma o professor. Para ele, os resultados dessa política podem ser vistos tanto no comércio como na posição de destaque do Brasil entre os países em desenvolvimento.

Rumo mantido A possibilidade de o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, passar o bastão antes mesmo de acabar o governo Lula não é vista como um problema para especialistas, uma vez que seus prováveis sucessores manteriam o caminho seguido nos últimos sete anos. ¿Caso Amorim saia, não haverá qualquer mudança significativa dada a linha atual da política externa, muito influenciada por considerações partidárias. Ela vai ser mantida qualquer que seja o ministro¿, destaca o embaixador Rubens Barbosa. Em setembro de 2009, Amorim, considerado o ¿melhor chanceler do mundo¿ pela revista americana Foreign Policy, se filiou ao Partido dos Trabalhadores. O ministro afirmou que não descarta concorrer a deputado federal pelo Rio de Janeiro ¿ mas, para isso, terá que deixar o Itamaraty até 3 de abril.

Talvez a guinada para a esquerda percebida em 2009, com a aproximação do Irã e em outras situações, possa se acentuar¿

Luiz Felipe Lampreia, chanceler entre 1995 e 2001

Giros de despedida

Se for cumprir todas as visitas que pretende fazer ainda no governo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva deverá embarcar em seu Airbus uma dezena de vezes até julho ¿ data em que começa, oficialmente, a campanha eleitoral. Entre os destinos já confirmados, estão Israel, Jordânia, Cisjordânia, Irã, China e o já rotineiro giro por países africanos, que, em 2010, incluirá a África do Sul, sede da Copa do Mundo. Há ainda a previsão de que Lula visite países das américas do Sul e Central, como Argentina, Venezuela e El Salvador, a Rússia, a Espanha e o Canadá ¿ que abrigará, em junho, os encontros do G-8 e G-20.

Duas dessas viagens, no entanto, têm chamado mais a atenção de quem acompanha de perto a política externa brasileira: a Israel e territórios palestinos e ao Irã. A primeira, por Lula ter guardado não só a visita, mas o seu voluntarismo em relação ao diálogo de paz, para o fim de seus oito anos de mandato. A outra, por selar, de vez, a polêmica aproximação do Brasil com Teerã. Para o embaixador Rubens Barbosa, a ida de Lula a Israel será ¿mais um exercício simbólico do que outra coisa¿. ¿Dada a aproximação do Brasil com o Irã e com a Palestina, é pouco provável que o Brasil possa desempenhar um papel mais ativo e efetivo na região¿, opina.

O ex-chanceler Luiz Felipe Lampreia afirma que ¿não há mal nenhum¿ em visitar a região, e sim em ¿querer mediar¿. ¿Anunciar que vai querer mediar, que vai querer fazer uma reconciliação, é de uma pretensão infinita. Esse é talvez um dos problemas internacionais mais complicados hoje. Além de que o Brasil não tem peso algum na região¿, argumenta.

O embaixador Roberto Abdenur, no entanto,considera que a visita de Lula a Israel e Cisjordânia é desejável e, inclusive, poderia ter sido feita antes. ¿Faz todo sentido que se aviste com seus colegas de países relevantes como Egito, Arábia Saudita, Jordânia, Síria, e também com a Autoridade Palestina. Indispensável é também uma visita a Israel, que poderia ter ocorrido mais cedo¿, afirma.

Para ele, contudo, a ida a Teerã é completamente dispensável. ¿Já tivemos o grosseiro erro de uma precipitada, injustificada e contraproducente aproximação com o Irã de Ahmadinejad, exatamente quando mais isolado internacionalmente e contestado internamente é o seu repressivo regime¿, observa. ¿É de esperar, para o bem dos interesses maiores do país, que o presidente não prejudique novamente seu merecido prestígio externo com uma visita ao Irã.¿ (IF)