Título: Argentina quer estatizar comércio agrícola
Autor: Rocha , Janes
Fonte: Valor Econômico, 02/03/2009, Internacional, p. A7

O governo argentino poderá assumir a comercialização da produção agrícola do país, em um movimento que está sendo interpretado localmente como estatização da atividade, atualmente dominada pelas grandes traders multinacionais de cereais como Cargill, ADM, Louis Dreyfus, Bunge e a argentina Deheza. Para isso, seria criada uma Agência de Comercialização que compraria a produção e asseguraria os preços ao produtor, além de controlar as exportações. Sobraria para as traders a aquisição de matéria-prima para processamento e exportação.

A notícia circulou pela imprensa local no fim da semana passado e caiu como uma bomba no meio das negociações entre o governo e o campo para a retomada do diálogo, cortado desde julho de 2008. Naquele mês, e com a inesperada ajuda do vice-presidente Julio Cobos, os agricultores conseguiram derrubar no Congresso um projeto do Executivo para aumentar a taxação sobre as exportações de grãos.

Embora não tenha sido confirmada oficialmente, a simples cogitação da medida causou reação de todos os lados. Trinta entidades de classe ligadas às bolsas de cereais, de futuros, produtores e exportadores em todo o país se manifestaram publicamente contrárias ao projeto. Em discurso ontem na abertura da 127ª sessão legislativa do Congresso, a presidente Cristina Kirchner não tocou no assunto. Mas afirmou que enviará ao Congresso "novas medidas para preservar o trabalho e a geração de atividade econômica", para o qual pediu a "colaboração" dos parlamentares.

Em sua edição deste domingo, o jornal "Página 12", o mais alinhado com o governo do casal Nestor e Cristina Kirchner, afirmou que a intervenção na comercialização é vista como uma necessidade e que o modelo de agência teria sido inspirado no sistema canadense e australiano.

Outros países, inclusive o Brasil, têm sistemas de intervenção para garantia de oferta e preços mínimos de produção. Na Argentina os produtores trabalham sem apoio oficial há anos e a proposta poderia representar a primeira vez em que o governo apoiaria a produção agropecuária com sistema de garantia aos pequenos e médios produtores.

O problema é o histórico de intervenções que prejudicaram o setor e o complicado momento político atual, oito meses antes das eleições para renovação de parte da Câmara e do Senado.

A agricultura responde por cerca de 40% das exportações da Argentina e perto de 14% da arrecadação tributária, através dos direitos de exportações de grãos, carnes e lácteos. Com a crise internacional, que derrubou os preços dos produtos agrícolas, e a seca, que quebrou perto de 20% da safra argentina, as receitas do governo vêm caindo desde dezembro, obrigando Cristina Kirchner a autorizar a volta das negociações com o campo.

A ministra de Produção, Débora Giorgi, foi encarregada conduzir o diálogo. Mas logo depois da primeira reunião, semana passada, em que nenhuma proposta foi colocada ou aceita, Giorgi foi a público acusar os agricultores de estar retendo nove milhões de toneladas de soja da safra passada em silos, para pressionar o governo a derrubar a retenção de 35% sobre as exportações. Os agricultores não negam que tenham estoques, mas dizem que são de 5,5 milhões de toneladas.

"Quem pode hoje não comercializar sua produção e sobreviver?", questionou Cristina Kirchner, reforçando a posição inflexível do governo frente aos agricultores. A presidente reiterou que o campo deve repartir os ganhos extraordinários que teve durante seis anos desde 2003.

Kirchner alega que com a desvalorização do peso, que beneficiou a todos os exportadores, os agricultores do país tiveram forte crescimento da rentabilidade por conta dos preços recordes das commodities, antes da crise financeira internacional.

Giorgi e os representantes das quatro principais entidades agrícolas têm uma nova reunião marcada para amanhã.