Título: Compasso de espera
Autor: Neumann, Denise
Fonte: Valor Econômico, 04/05/2009, Especial, p. F1

A crise financeira internacional interrompeu o maior e mais longo ciclo de crescimento e investimento da economia brasileira pelo menos desde o milagre dos anos 70. Mais do que abortar o tão esperado "crescimento sustentado", contudo, a recessão mundial que se seguiu devolveu ao país uma cara de economia bipartida. No Brasil que emerge lentamente dos 230 dias pós-quebra do Lehman Brothers, os setores voltados ao mercado interno e aqueles ancorados na exportação seguem trajetórias distintas - uma divisão que havia desaparecido ao longo dos anos 2007 e 2008. Retrato do país que já cresce, construtoras populares se preparam para construir o dobro de imóveis que ergueram em 2008. Na siderurgia, fotografia do outro Brasil, a capacidade ociosa chega a 65%. Assim, o Brasil, que em outras crises saiu do sufoco engatado no crescimento externo (como lembra Candido Bracher, presidente do Itaú BBA), agora espera pela retomada dos Estados Unidos e da Europa e torce pelo apetite chinês.

Em dezembro do ano passado - o fundo do poço -, a produção industrial brasileira despencou 19% em relação ao setembro pré-crise. Pelos dados disponíveis até agora, janeiro, fevereiro e março foram meses de lenta recuperação, com a indústria acumulando pequenos resultados azuis de um mês para o outro, e o varejo recuperando-se do tombo quase celeremente.

O governo armou-se de um forte conjunto de medidas anticíclicas. Algumas vieram relativamente logo, como a redução no Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) sobre automóveis e as medidas para destravar o crédito (liberação de compulsórios e linhas destinadas a irrigar os bancos médios), enquanto outras demoraram bastante, como o pacote habitacional, e a própria redução dos juros.

Empresários beneficiados reconhecem os efeitos e acrescentam uma medida antiga, mas muito eficaz: a política real de aumento do salário mínimo, que elevou em 12% este rendimento e os benefícios previdenciários a ele associados já em fevereiro. Como consequência, apesar das demissões, a massa real de salários chegou a março apenas 0,5% inferior à de setembro nas seis maiores regiões metropolitanas do país. Nos 12 shoppings centers da Multiplan, maior rede de centros comerciais do país em faturamento, essa renda circulou e fez as vendas crescerem 20% no primeiro trimestre em relação a igual período de 2008. "Fomos surpreendidos positivamente", resume Isaac Peres, presidente e controlador da empresa.

"O mercado mudou completamente, agora temos um bom problema para administrar", diz Leonardo Correa, diretor de relações com investidores da MRV, construtora focada na baixa renda. Como outras, ela corre para aproveitar o pacote do governo que quer erguer 1 milhão de moradias.

Embora contem com boas vendas ao longo de 2009, mesmo as empresas dos setores beneficiados ainda não falam na retomada dos investimentos. Duas razões explicam a cautela: a queda nas exportações deixou o setor ocioso e teme-se o comportamento do varejo quando os incentivos acabarem. Mesmo o setor automotivo, que vendeu 200 mil carros a mais no primeiro trimestre, trabalha com uma produção 7% menor ao longo do ano puxada por uma queda de 45% na exportação de veículos.

"Os projetos só vão voltar quando tiver demanda. Estávamos muito bem porque foi a crença no crescimento do produto que despertou o espírito animal do empresário e elevou o nível dos investimentos nos últimos três anos", lembra o ex-ministro Antonio Delfim Netto. O presidente do BNDES, Luciano Coutinho, acha bom não esquecer que existem R$ 146 bilhões em projetos enquadrados no BNDES. "As empresas adiaram projetos, mas eles não foram cancelados", insiste.

A ideia de abandonar investimentos novos ou de expansão, contudo, começa a circular, pelo menos, entre setores muito afetados, como a indústria de mineração e de siderurgia. Na mineração, os negócios foram para o fundo do poço em outubro e por lá permanecem. Roger Agnelli, presidente da Vale, maior companhia de minério de ferro do mundo, diz que o grande desafio, hoje, "é saber como retomar a demanda, duramente afetada pelo corte de crédito". A empresa estima produzir 25% menos este ano em relação a 2008 - maior queda na sua história.

No setor siderúrgico, os números de ociosidade fazem pensar em usinas fantasmas. A queda na demanda se mantém acima de 40%, a concorrência de importados subiu e o mercado externo encolheu. Projeções para o futuro de grandes empresas mostram que algumas poderão retomar o patamar de vendas e lucros de 2008 apenas em 2013. Diante deste cenário, diz Marco Pólo de Mello Lopes, vice-presidente do Instituto Brasileiro de Siderurgia (IBS), os investimentos que poderiam dobrar a capacidade atual de 41 milhões de toneladas ficarão comprometidos.

As perspectivas sombrias da agricultura se dissiparam depois do primeiro trimestre, ajudadas pelo anúncio de um crédito rural de R$ 100 bilhões para a próxima safra, valor 28% mais gordo que o anterior. Custos menores e preços que não foram ladeira abaixo ajudaram, mas a gripe suína trouxe incógnitas ao setor.

No governo, estima-se que as medidas anticíclicas adotadas até aqui são suficientes para fazer a economia crescer a um ritmo de cerca de 4% no último trimestre de 2009, comparando com o mesmo período do ano passado. O ritmo forte do fim do ano torna mais provável uma expansão de 4,5% em 2010, retomando patamares mais próximos aos de antes da crise. Mas, até lá, será preciso vencer também o pessimismo de empresários e consumidores, especialmente quando os números negativos do PIB do primeiro trimestre forem divulgados em meados de junho - já bastante defasados.

Samuel Pessoa, professor da FGV, está relativamente otimista com o desempenho da atividade. "O choque externo não nos desorganizou. O estrago que a inovação provocou no sistema financeiro mundial não chegou aqui", diz ele, ressaltando uma boa relação nos termos de troca (exportações e importações do país) e a reação do emprego formal a partir de março.

Bracher, do Itaú BBA, avalia que, neste momento, ineficiências do país - como os elevados depósitos compulsórios e as altas taxas de juros- viraram virtudes porque deram espaço para a ação da política monetária, uma margem de manobra que faltou a países com juros muito próximos de zero.

Na área de infraestrutura, os empresários também veem na crise uma oportunidade de "ganhar tempo" para corrigir ineficiências. Em energia, transportes e operação portuária, a demanda crescia a uma velocidade superior à oferta. "Este é um ano para construir uma base sólida de infraestrutura para sairmos da crise", diz o presidente da Associação dos Grandes Consumidores Industriais de Energia (Abrace), Ricardo Lima.

Bipartido, o Brasil se prepara para um novo embate em 2010. Afinal, a crise recolocou a economia no centro do debate político, e, por isso, a sucessão de Luiz Inácio Lula da Silva vai passar pela economia.