Título: Os derrotados pela vitória argentina
Autor: Desmond Lachman
Fonte: Valor Econômico, 15/03/2005, Opinião, p. A16

Pode-se entender muito bem o palpável sentimento de satisfação em muitos mercados emergentes com o triunfo da Argentina sobre o Fundo Monetário Internacional (FMI) nas suas recentes negociações de reestruturação da dívida. Afinal, a Argentina, na contramão de todas as probabilidades e contra os conselhos do FMI, teve êxito em persuadir 75% dos seus credores com a realização de um corte inédito para a reestruturação da sua dívida soberana externa. Resta, saber, porém, se a euforia dos mercados emergentes perdurará depois de a poeira assentar. Parece mais provável, no entanto, que outras economias de mercados emergentes cheguem à conclusão de que o precedente argentino será um complicador de futuras reestruturações de dívidas soberanas. E, ao fazer isso, esse precedente terá elevado o custo futuro das captações dos mercados emergentes no mercado internacional de capitais. Nestor Kirchner, o presidente da Argentina, tem todos os motivos para desfrutar o sucesso da sua estratégia intransigente na reestruturação da dívida soberana de US$ 100 bilhões da Argentina. Três anos depois do desastroso colapso do Plano de Conversibilidade da Argentina, em dezembro de 2001, a paciência obstinada de Kirchner obteve êxito em levar uma vasta maioria dos credores do país a aceitar uma eliminação de 70% das suas reivindicações. Assim procedendo, Kirchner não só logrou completar a maior reestruturação de dívida soberana já registrada, como também conseguiu fazê-lo em termos que são quase duplamente mais favoráveis que os obtidos em outras reestruturações recentes desse tipo. O sucesso da Argentina na reestruturação da sua dívida externa deve pouco ao apoio ou ao envolvimento do FMI. Na verdade, o FMI já se deu por muito satisfeito em não tomar parte nas negociações da dívida do setor privado do país, depois de já ter fechado o seu próprio acordo com o governo argentino, em setembro de 2003. Esse acordo assegurou, na prática, que a Argentina não descumpriria suas obrigações para com a dívida de US$ 16 bilhões ao FMI. Ao obter esse tipo de acordo de empréstimo, o FMI se desviou da sua bem estabelecida prática anterior, de não emprestar a um país inadimplente com seus credores privados, a não ser que o governo esteja negociando com esses credores com boa-fé. Com sua reestruturação resolvida, a Argentina agora está a caminho de voltar aos mercados de capitais internacionais, dos quais necessita urgentemente para sustentar a sua recuperação pós-Plano de Conversibilidade. A agência de classificação de risco S&P já indicou a sua inclinação de classificar a Argentina em B-, na esteira da conclusão da reestruturação da sua dívida, ao mesmo tempo em que o país está prestes a ser mais uma vez incluído nos vários índices de dívida de mercados emergentes.

Em um mercado menos líquido, os credores vão cobrar pelo risco de se repetir não apenas o calote, mas a sua renegociação

Ao mesmo tempo, a Argentina agora está em uma posição de retomar o seu programa do FMI, caso assim deseje. Todos esses fatores poderão estimular o retorno de grandes quantias de capital argentino fugido, que buscou a segurança no exterior enquanto se aprofundava a crise financeira em casa. Embora tudo agora pareça estar bem e bom para aquele país, é o caso de nos perguntarmos como o precedente argentino poderá afetar outros mercados emergentes. Suscitar essa pergunta não implica que outros países se apressarão em seguir a Argentina rumo ao calote, especialmente depois de terem visto os terríveis custos que o povo argentino precisou suportar desde o inadimplemento do seu país. Isso sugere, porém, que, em caso de um futuro calote latino-americano, as considerações políticas locais obrigarão o país afetado a ser tão inflexível e tão pão-duro em suas negociações da dívida com os credores externos como o foi a Argentina. Por exemplo, no caso hipotético de o Brasil ficar inadimplente, poderia o presidente Lula concordar politicamente em compor com os credores externos do Brasil em muito mais do que os US$ 0,30 para o dólar que a Argentina arrancou dos seus credores? Ou, da mesma forma, poderia o presidente Lula permitir politicamente que o FMI se envolvesse nas negociações com os credores privados do Brasil, depois de a Argentina ter rechaçado essa mediação tão publicamente, nas suas bem-sucedidas negociações? Esse pareceria ser o caso, independente de quão melhor fosse a capacidade de pagamento do Brasil em relação à da Argentina. Essas considerações provavelmente tornarão os credores externos muito mais arredios do que teriam sido anteriormente, ao primeiro sinal de problema futuro, em uma economia de mercado emergente de grande porte. Será que os credores, confrontados com a perspectiva de uma demorada renegociação da dívida, que agora tem muito maior probabilidade de se transformar em uma composição desastrosa, realmente gostariam de conceder o benefício da dúvida aos países de mercados emergentes? Em um mercado menos líquido do que esse que temos atualmente, os credores estrangeiros terão expectativa de serem compensados de forma mais adequada do que foram antes, por correrem o risco de uma repetição de uma situação semelhante à da Argentina. Ao assim agirem, as economias dos mercados emergentes descobrirão que serão eles os que pagarão a conta pelo espetacular triunfo da Argentina sobre o FMI.