Título: Lições argentinas
Autor: Carlos Lessa
Fonte: Valor Econômico, 16/03/2005, Opinião, p. A13

Na entrada do século XX, a Buenos Aires de Torquato di Tella foi a Paris do Novo Mundo. Exibia a mais imponente avenida. O tango era a música do século e a Belle Époque está povoada de fantasias dos milionários platinos. A Argentina nos anos 40 tinha a sexta renda per capita do mundo. Praticava um sofisticado padrão cultural e educacional. Absorveu uma imensa emigração européia. Em fins de 2001, o país atingiu o fundo do poço. A pobreza mais que dobrou e chegou a 40% da população. Um país que não conhecia miséria acusou 16% de indigência. A contração de salários foi superior a 25%. O PIB recuou 11% em 2001. A dolarização detonou em 2001/2002 mais de 20% da economia. A inflação foi a 40%. Mas nos anos 90 a experiência argentina foi apresentada como um caso de êxito. Acatou todas as orientações do chamado consenso de Washington. Foi fiel às diretivas do FMI. O país foi cobaia dócil que renunciou à soberania monetária para adotar a âncora cambial. Todas as empresas estatais foram privatizadas. A maioria das empresas de capital argentino foi transferida para controladores externos. Até mesmo terras do pampa úmido passaram a propriedade estrangeira. Consta que George Soros tem 180 mil hectares da melhor terra do mundo. O presidente Menem (1989-1999) falou de "relações carnais com os EUA". A catástrofe foi acompanhada da renúncia de Fernando de La Rúa. O país viveu momentos de prévia guerra civil. Foi abandonado pela comunidade internacional. Sumiram os aplausos. A rapina foi radical. Quando quebrou, bancos que retiraram as reservas físicas por vôos não autorizados. Foram oito anos de ilusão com a paridade cambial. Dolarizar é permitir que a moeda estrangeira assuma algumas das funções do dinheiro, reduzindo a integridade da moeda nacional. Entre 1991 e 2001 a Argentina adotou o currency board, que é a limitação das emissões em moeda nacional ao lastro em dólar no BC. Isto foi feito para controlar a inflação. Certamente segura os "tradebles", porém os "nontradebles" continuam evoluindo em alta. As elevações de custos derivadas comprometem exportações, estimulam importações e ampliam os déficits em conta corrente. A dolarização deteriora gradativamente a balança de pagamento. Em situação depressiva, a dolarização impede financiar com emissão de moeda nacional um déficit anti-cíclico. Leva o governo federal a contrair uma dívida em dólares para quaisquer gastos, inclusive reajustes de custeio. Aumenta a demanda doméstica de dólar. Acaba com o papel do BC de prestamista em última instância e expõe os bancos nacionais à vulnerabilidade. A dolarização derrotou a hiperinflação ao fazer da âncora cambial a chave macroeconômica. A liquidez passou a depender das flutuações das reservas cambiais. De certa forma, a Argentina ficou atrelada ao FED. A Argentina, com exportações pouco dinâmicas e fragilidade industrial, percorreu uma sucessão de déficits de transações correntes e inspirou crises de confiança. Os argentinos melhor sucedidos acumularam dólares manuais e aplicaram crescentemente no exterior. A estimativa que conheço é de U$ 95 bilhões. A redução de liquidez aumenta juros, inibe investimento, amplia o endividamento público. Enquanto a diferencial de juros internos e externos atrair empréstimos do exterior o modelo tem sobrevida. Porém, tende a alimentar desconfiança em relação à solvência pública. A desconfiança caminhou para as administrações provinciais e inspirou movimentos de fuga. Desde então, a Argentina vem se recuperando. Em 2003, cresceu o PIB em 11,7; em 2004, 8%. São 11 trimestres de crescimento com o PIB em recuperação, se aproximando do nível de 1998. Foi reduzido o desemprego. Em dezembro de 2004 atingiu 12,1% contra 14,5% em dezembro de 2003. Oficialmente, o máximo desemprego teria sido de 21,5%, em 2002. Hoje, estão desempregados mais de 4 milhões de argentinos. As reservas internacionais cresceram para U$ 20 bilhões. A explicação reside na contração das importações e na interrupção de remessas para o exterior.

Não entendo o porquê da fantasia de ter riqueza e renda em dólar; afinal, os argentinos podem ser felizes em pesos

Renasceu a moeda argentina. A pesificação restaurou a soberania político-econômica nacional. O país abandonou a conversibilidade. Saiu da paridade para uma taxa de 3,7 pesos por dólar. Foram congeladas as tarifas das empresas públicas privatizadas. A inflação ficou em 7,2%. A Argentina conseguiu em 25 de fevereiro a adesão de 76,07% dos credores de dívida pública privada (de U$ 181,8 bilhões) à sua proposta de deságio e troca de títulos. Assim, reduziu a dívida pública em mais de U$ 40 bilhões, alongou os prazos e reduziu os juros da dívida externa. Ainda deve U$ 141 bilhões. Hoje 37% dos bônus da dívida são em pesos. Os serviços de dívida se reduziram de U$ 10 bilhões para U$ 3,2 bilhões. Com a melhoria de arrecadação, foi possível descomprimir um pouco o gasto do governo e das províncias. O crescimento de 2003/2004 foi via ocupação de capacidade ociosa. Há uma dificuldade prospectiva. Apesar da redução, a dívida ainda corresponde a 72% do PIB. Será difícil manter um expressivo superávit em transações correntes. A Argentina precisa crescer acima de 5% ao ano. O desenvolvimento terá que ser cuidadosamente pensado para que não se reduza muito o superávit nos pagamentos internacionais. Estive em Buenos Aires em fins de 2001. Na ocasião, perguntei a meus colegas portenhos porque um país que tem tudo para ser feliz havia se esquecido destas potencialidades. Não entendo o porquê da fantasia de ter riqueza e renda em dólar. Afinal, os argentinos podem ser felizes em pesos. E podem com facilidade recomprar os ativos de estrangeiros hoje extremamente desvalorizados, porém intactos em seu potencial produtivo. As terras de Soros valem muito pouco. As empresas públicas podem ser compradas com forte deságio. Como sul-americano, felicito o atual governo argentino por falar grosso com o FMI. Em 9 de março de 2004, o presidente Kirchner anunciou que somente pagaria os U$ 3,1 bilhões ao Fundo com a prévia renovação do acordo. Foi a segunda vez que o desafiou. Já em setembro de 2003, havia feito o mesmo gesto com a dívida de U$ 2,9 bilhões. Teve êxito. A Argentina não foi obrigada a elevar o superávit fiscal, a adotar a insubstitubilidade dos bancos estrangeiros gestores de troca dos bônus de dívida; a conceder preferência ao Comitê Global de credores da Argentina, ou elevar para 80% o nível de adesão para proposta de troca de títulos. Prevaleceu os 60% que propôs. O FMI como porta voz de credores teve que ceder. Seu diretor Dawson está preparando o terreno quando diz: "...a conclusão da oferta está ocorrendo num bom momento econômico internacional". O FMI declara que foi um bom resultado mas que ainda não houve a saída da moratória. Resta ir à justiça para os que não aderiram à oferta. Dawson lembra que ainda existem passos importantes para a estabilização. Os profetas do fracasso irão prognosticar terríveis dificuldades para os argentinos. Porém Kirchner gozou os sábios do neoliberalismo. Após um default recupera-se a confiança. O ministro Lavagna disse: "Sem crescimento com inclusão social não existe capacidade de pagamento. O mercado já se prepara para elevar o "grade" argentino. O presidente ameaçou retomar o controle das empresas prestadoras de serviços públicos. Kirchner insiste em "soluções argentinas para os problemas argentinos". É extremamente interessante para o Brasil uma Venezuela em franca recuperação e com um líder altamente prestigiado. É animadora a postura inequívoca da Argentina no exercício de sua soberania. Não resisto a lembrar que o mercado festeja os países firmes. A Rússia, que fez uma moratória interna em 1998, tem hoje um "investiment grade" superior ao do Brasil. Com reservas internacionais de U$ 121, 2 bilhões e com o petróleo, a Rússia é festejada. Espero que a Argentina não escute o canto de sereia e venha adotar o modelo de metas monetárias. Seu Banco Central, em nome da estabilidade, vetará o esforço pelo crescimento. O crescimento argentino é difícil. Seu Estado está desguarnecido de agentes indutores e coordenadores. Apesar do esforço de reformatação dos bancos públicos. Se o Brasil aprender a lição argentina, temos os agentes para uma retomada firme do desenvolvimento. Carlos Lessa é professor-titular de economia brasileira da UFRJ. Escreve mensalmente às quartas.