Título: O governo do PT tem uma agenda liberal. Por quê?
Autor: Edward Amadeo
Fonte: Valor Econômico, 06/10/2004, Opinião, p. A-11

O Brasil não tem um partido de tradição liberal, aliás o país não tem cultura liberal. E, no entanto, a agenda do governo PT é liberal. Não se vê nas suas propostas coisas como radicalizar a reforma agrária, aumentar o seguro-desemprego, aumentar tarifas de importação, recomprar ações da Petrobras, rever as privatizações, renegociar as dívidas pública e externa, mandar o FMI para casa. É verdade que aqui e ali membros do governo deixam escapar antigas preferências, como limitar as horas-extras, aumentar o índice de nacionalização das compras da Petrobras, favorecer empresas de capital nacional em empréstimos do BNDES, retirar investimentos das contas primárias do governo, participar do capital da CRVD (Vale do Rio Doce). Na maioria das vezes não passam de balões de ensaio, logo revistos por alguma instância superior do governo. Mas a agenda para valer, aquela que mobiliza o presidente e seus principais ministros, é liberal. Por liberal entenda-se uma agenda que reduz o escopo do setor público e oferece às empresas privadas um ambiente mais propício para ter lucros, empregar e pagar impostos. Exemplos: reforma da previdência do setor público, lei de falência, lei das agências reguladoras, reforma sindical e trabalhista, autonomia do Banco Central, aumento do superávit primário, redução do Imposto de Renda para investimentos na Bolsa de Valores, desoneração do IPI de bens de capital. Nem todas essas iniciativas vingarão - embora algumas já tenham vingado -, mas o importante é o que consta da agenda. Como é possível que em um país sem elites liberais, sem tradição liberal, sem um partido liberal, um partido de esquerda adote uma agenda liberal? É preciso ter em mente que esse fenômeno não é universal, ou seja, não há forças sociais ou econômicas que levem a esse caminho em todo o mundo. Basta ver o que está acontecendo na Argentina e na Venezuela. Embora os casos da Índia e China emprestem algum suporte à idéia de que o processo tem uma lógica que vai além das fronteiras nacionais. É muito difícil responder a essa pergunta mas vale a pena levantar algumas hipóteses, porque evidentemente a postura do PT no governo federal surpreendeu a todos. No Brasil, diferentemente de países como o Chile e a Inglaterra, não houve um governo liberal que fizesse as reformas liberais. O fato de a social-democracia naqueles dois países ter confirmado a agenda liberal de seus antecessores é completamente diferente do caso brasileiro, em que são os partidos social-democratas, PSDB e PT, os que estão promovendo as reformas. A primeira hipótese tem a ver com a crise fiscal. Como o governo não tem de onde tirar mais recursos para aumentar gastos sociais e investimentos públicos, a saída é lidar com esse limite promovendo um ajuste. O governo brasileiro despende quase 40% do PIB, bem mais que os EUA, sendo 12% com previdência social (o dobro dos EUA), sua dívida como proporção do PIB cresceu, a qualidade dos impostos é muito ruim. Mais que isso, quase todos os gastos estão previstos em lei, indexados a receitas e ao salário mínimo. Ou seja, a margem de manobra do presidente da República é próxima de nula.

O fato é que nenhum economista de esquerda propôs uma agenda econômica articulada e diferente da adotada

A segunda hipótese é que o caminho da escalada isolacionista (repúdio das dívidas, dos acordos com o FMI, do fechamento da economia), como fez, ou foi forçada a fazer, a Argentina, mostrou-se um desastre. E a equipe de governo do presidente Lula deu-se conta disso durante o período de transição, quando foi apresentada aos cenários com que trabalhava a equipe econômica do presidente Fernando Henrique. Deve-se à lucidez dos dois presidentes e suas equipes evitar que o Brasil tivesse seguido o caminho argentino. A terceira hipótese é política. Para se eleger, o presidente Lula contou decisivamente com os votos de eleitores de centro que não estavam e não estão dispostos a apoiar aventuras, porque têm o que perder, notadamente, estabilidade econômica, a maioria tem empregos e algum patrimônio, que pode evaporar quando o governo resolve fazer mágicas. A quarta hipótese é a derrocada econômica dos países socialistas e comunistas. O fracasso de países como União Soviética, Índia e Alemanha Oriental até o início dos anos 90, assim como de Cuba, são um ingrediente importante para a revisão dos modelos de planejamento central em comparação com as economias de mercado. Por último, o fato de a única agenda disponível ser liberal fez com que o governo do PT a acolhesse. O fato é que nenhum economista de esquerda propôs uma agenda econômica articulada e diferente da adotada, nem repetiu depois da campanha eleitoral que o governo deveria repudiar as dívidas pública e externa, rever privatizações etc., e mostrado os benefícios dessas propostas. Um governo não adota uma agenda sem apoio social. Portanto, não se deve concluir que a força das idéias opera em um vácuo. Mas tampouco se deve desprezá-la. Não foi por um golpe de sorte que as coisas aconteceram. Há fatores históricos, uma seqüência de mudanças (o ajuste fiscal, a lei de responsabilidade fiscal), além da ação de algumas pessoas, nos governos Fernando Henrique e Lula, que fez a diferença. Dito isso, talvez valha a pena lembrar que a agenda liberal não preconiza o Estado mínimo, nem o império dos mercados, nem a irrelevância das instituições. Pelo contrário, a discussão hoje diz respeito ao papel do Estado e das instituições para o bom funcionamento dos mercados. Os mercados funcionam mal quando são excessivamente regulados, quando o Estado tem poder discricionário sobre as regras e há incerteza quanto a elas, e quando não se respeitam os contratos e não se preserva o direito de propriedade. O debate sobre as políticas do governo do PT é contemporâneo, isto é, tem a ver com o que se discute mundo a fora. O governo do PT não capitulou à agenda liberal. Tudo indica que tenha sido persuadida a favor dela porque era a que estava mais articulada, porque tinha muito a perder com as alternativas e porque tinha apoio social e político para levá-la a cabo.