Título: De olho na recomposição de margem
Autor: Maria Clara R. M. do Prado
Fonte: Valor Econômico, 07/10/2004, Opinião, p. A-11

A leitura atenta do último Relatório de Inflação do Banco Central (setembro de 2004) e, ainda, dos dados do comércio exterior, ajuda a esclarecer algumas dúvidas que permeiam as expectativas com relação ao desempenho da economia brasileira. Primeiro, é preciso notar que existe uma estreita relação entre taxas de juros e taxa de câmbio no que diz respeito ao manejo da política monetária. Essa "combinação" funciona como importante ferramenta para o Banco Central. A valorização do real face ao dólar americano, que tanto desagrada aos exportadores, tem ajudado a autoridade monetária a manter a estabilidade com moderada alta na taxa de juros básica, a taxa Selic do Banco Central. Esta subiu de 16% para 16,25% ao ano por decisão do último Copom, o comitê de política monetária. Dito de outro modo: se o real estivesse se desvalorizando face ao dólar - ou seja, sob pressão de fatores externos ou mesmo internos - a taxa Selic talvez precisasse estar hoje mais alta, acima de 16,25%. A explicação é simples. Real mais valorizado significa produto importado mais barato. É mercadoria que entra no país para atender à demanda interna e alivia a pressão sobre os preços. Os dados do comércio externo começam a mostrar que as importações estão em processo de expansão. Em setembro, somaram US$ 5,8 bilhões - média diária de US$ 274 milhões, a mais alta desde dezembro de 1996. No ano, acumulam nos nove primeiros meses o valor de US$ 45,2 bilhões, quase 30% acima do observado no mesmo período do ano passado. Diga-se, aliás, que o risco de reversão do superávit da balança comercial do país é algo que nem de longe se imagina. As exportações continuam apresentando um desempenho largamente satisfatório. Atingiram US$ 8,9 bilhões em setembro, garantindo no ano um acumulado de US$ 70,3 bilhões, recorde absoluto para o período. A valorização da moeda nacional face ao dólar tem, obviamente, um limite. Não interessa ao Banco Central que o dólar caia muito aquém dos R$ 2,80, lembrando que essa é a taxa nominal, o que significa dizer que a taxa real de câmbio é ainda mais baixa quando se desconta a inflação ocorrida. O ajuste tenderia a vir, caso persistisse uma queda acentuada no dólar. E não deve ter sido por outro motivo que o Copom decidiu-se pelo aumento, embora moderado, da taxa de juros. Aquele é um ponto importante quando se olha o gráfico ao lado. Ele mostra a evolução da taxa de câmbio, em nítida queda, e de dois índices: o IPA industrial do IGP-DI (os preços no atacado do setor industrial que entram na composição do índice geral de preços-disponibilidade interna da FGV do Rio) e o IPCA industrial, parte do IPCA (37%) formado por preços de produtos industriais como o grupo de higiene e limpeza, de eletrodomésticos e automóveis. Utilizou-se a média móvel de três meses e, para setembro, o IPCA-15 e o IGP-M como "proxy" para os índices correlatos, que ainda não tinham sido divulgados. O que se vê é que a desvalorização cambial foi o principal fator a pressionar os preços no atacado entre maio de 2002 e maio de 2003, mas não pode ser acusado de algoz da inflação a partir de janeiro. Os preços deste ano têm sido afetados por um vilão de outra natureza: o descompasso entre a oferta e a demanda, notadamente de "commodities", como minério de ferro, além do aço, e mais fortemente agora o petróleo, com efeitos sobre importantes produtos da cadeia industrial. Esse é o dado novo com o qual a autoridade monetária tem se deparado. O gráfico indica que os preços no atacado sobem motivados pela iniciativa de recomposição de margem (ou aumento de lucro) da parte das indústrias cuja demanda tem crescido. Esse movimento, especialmente frutífero nos setores oligopolizados, pode inviabilizar qualquer tentativa de controle dos preços se não for enfrentado com firmeza. Isso fica claro no Relatório de Inflação: "Em um ambiente mais propício à recomposição de margens, é importante que reajustes salariais não sejam concedidos na presunção de que a política monetária acomodará seu repasse aos preços", diz o texto, na página 107. De nada adiantaria para os assalariados terem aumento nominal de salário com inflação em alta. É o mesmo que não sair do lugar ou, ainda pior, amargar perda real de poder aquisitivo. "O processo de recuperação de margem ainda não chegou ao varejo, mas pode chegar, consolidando a inflação em patamar mais alto, e isso exige cautela da parte do Banco Central", avalia o economista da PUC do Rio, Luiz Roberto Cunha, especialista em preços. Neste sentido, a valorização do câmbio ajuda, mas não é suficiente para quebrar o poder dos oligopólios a menos que fosse levada ao extremo, o que não parece ser a intenção do governo. Resta, portanto, a taxa de juros. Sua função, no atual cenário, não se esgota no objetivo de conter a demanda. Tem o papel de encarecer a formação de estoques e forçar a oferta de produtos no mercado interno. Isso, enquanto os investimentos não aparecem.