Título: Em defesa de um pacto previdenciário suprapartidário
Autor: Fabio Giambiagi
Fonte: Valor Econômico, 11/10/2004, Opinião, p. A-7

Há dois anos, o então presidente Fernando Henrique Cardoso coordenou um pacto suprapartidário. Por meio dele, os quatro principais candidatos nas eleições que seriam realizadas em outubro deram seu aval à negociação de um novo empréstimo do FMI que permitisse ao país transitar pelas dificuldades de 2002. A engenharia política que prevaleceu na ocasião foi um exemplo de política feita com "P" maiúscula e revelou um elevado senso de responsabilidade de todas as partes envolvidas. O fato contribuiu para enfrentar aquele momento delicado e passou à comunidade internacional uma imagem de coesão interna e de amadurecimento. O Brasil se beneficiaria se esse espírito fosse resgatado e, em 2005, o conjunto das forças políticas mais relevantes do país se reunisse para tratar o que se poderia denominar de "pacto previdenciário". Este é tão importante para o futuro brasileiro de médio e longo prazo quanto aquele consenso em torno do acordo com o FMI foi decisivo para superar os problemas de curto prazo em 2002. O Pacto de Toledo, realizado em 1996 entre as forças políticas espanholas sob a coordenação de Felipe González, e renegociado em 2003 por Aznar, pode servir de inspiração. Ressalte-se que o porta-voz da então oposição (o PSOE) comemorou o acordo como prova de que "a política é capaz de encontrar solução diante dos problemas decorrentes das novas situações sociais, como o envelhecimento da população". Para que a boa fase pela qual a economia brasileira está passando tenha continuidade por muitos anos, é preciso começar a "construir o futuro" desde já. Nesse sentido, seria importante que o Brasil atacasse os problemas antes que eles se manifestem de forma mais grave, ao invés de, como várias vezes nos últimos 20 anos, e só reagir diante do fato consumado. Mais de um observador já notou, com uma mistura de pesar e de cinismo, que "o Brasil só avança nas crises", quando o senso de urgência nos leva a apoiar medidas há tempo necessárias. Foi assim com o fim da alta inflação em 1994, com o ajuste fiscal, em 1999, ou com a crise energética, em 2001. O nome do jogo é "reforma da Previdência". E isso passa por entender que o tema previdenciário deveria ser considerado uma política de Estado, ou seja, um dos pontos em que os principais agrupamentos políticos têm consciência de que algumas questões devem ser isoladas das disputas políticas. A proposta de reforma, para cuja discussão o presidente da República poderia convidar as lideranças dos demais partidos, seria guiada por três princípios, de tal modo que as mudanças: 1) levem em conta a realidade atuarial; 2) tenham a sua implementação diluída ao longo de 10 a 20 anos; 3) comecem a ter vigência apenas cinco anos depois, em 2010, para dar tempo a todos os indivíduos afetados para se prepararem para a nova situação. Esse "pacto previdenciário" envolveria 7 pontos: i) desvinculação do piso previdenciário em relação ao salário mínimo, passando a aumentar-se todas as aposentadorias em função da variação do INPC, única medida que começaria a ter vigência ainda no atual governo, para não onerar mais ainda as contas do INSS; ii) adoção para o INSS do princípio da idade mínima para aposentadoria por tempo de contribuição, medida já estabelecida para servidores públicos, de 55 anos para as mulheres e 60 para os homens em 2010, com aumento progressivo até 2020, para 63 e 65 anos, respectivamente;

Reduzir a parcela do PIB que é gasta com previdência e assistencialismo é a melhor forma de melhorar as bases para o crescimento

iii) aumento da idade requerida para aposentadoria por idade, de 65 para 67 anos no caso dos homens, sendo 66 anos em 2010 e 67 anos em 2020; iv) aumento do número mínimo de anos de contribuição para quem se aposenta por idade, de 15 anos, em 2010, para 25 anos, em 2030, na proporção de seis meses a mais por ano; v) extinção da diferenças entre homens e mulheres quanto à exigência de tempo de contribuição e redução da diferença de idade para aposentadoria, com redução progressiva da diferença, que seria de quatro anos em 2010 e diminuiria em um ano a cada cinco anos, caindo para três anos em 2015 e dois anos em 2020, de tal forma que a aposentadoria feminina por tempo de contribuição em 2020 seja condicionada a uma idade mínima de 63 anos, e por idade a uma idade de 65 anos, valendo o mesmo para os funcionários públicos; vi) extinção do regime especial dos professores, que se aposentam cinco anos mais cedo, número que cairia um ano a cada dois anos, a partir de 2010; e vii) aumento da idade de concessão do benefício da Lei Orgânica da Previdência Social (Loas) de 65 para 70 anos, pois ninguém que ganhe na proximidade de um salário mínimo vai contribuir por vários anos para o INSS para se aposentar, se tiver assegurado o mesmo benefício sem nunca ter contribuído. Em matéria previdenciária, o brasileiro de todas as classes é muito indulgente. A classe média acha natural se aposentar por tempo de contribuição com 57 anos; para o pobre é normal contribuir para o INSS por apenas 15 anos quando em qualquer país o requisito de contribuição é muito maior; e o muito pobre julga justo passar a receber a mesada do Loas a partir dos 65 anos sem nunca ter feito uma única contribuição. Trata-se de um problema cultural, herança de um Estado paternalista e que espanta a qualquer visitante estrangeiro a quem sejam explicadas as características do sistema. É inconcebível que o camponês nicaragüense ou o operário boliviano se aposentem aos 60 ou 65 anos e eu e os meus amigos de classe média possamos nos aposentar com 56 ou 57 anos. Isso é uma utilização inadequada de recursos públicos. Reduzir a parcela do PIB que é gasta com previdência e assistencialismo é a melhor forma de melhorar as bases para o crescimento. Se o investimento do governo era de 4 % do PIB, no começo dos anos 70, e apenas 2 % do PIB, em 2004, não é por culpa do FMI, e sim porque gasta-se muito mais hoje do que no passado com despesas correntes do governo. É esse o problema que uma reforma da Previdência deve encarar.