Título: Reformas não evitam dados distorcidos
Autor: David Henry
Fonte: Valor Econômico, 14/10/2004, Empresas & S.A., p. B-4

Apesar das mudanças nas regras depois dos escândalos, companhias ainda manipulam os números

A Halliburton, gigante da construção e empreiteira do setor militar, fez uma coisa surpreendente no ano passado: ela divulgou lucro de US$ 339 milhões, mesmo tendo gasto US$ 775 milhões a mais do que recebeu dos clientes. A companhia não fez nada ilegal. A Halliburton fez grandes desembolsos em 2003 em contratos com o Exército dos Estados Unidos para trabalhar no Iraque - contratos pelos quais esperava ser paga depois. Mesmo assim, ela computou imediatamente parte dessas receitas esperadas porque elas estavam relacionadas a trabalhos feitos no ano passado. Os investidores não tiveram um quadro completo da situação até seis semanas depois, quando a companhia encaminhou seu balanço anual para a Securities and Exchange Commission (SEC), a comissão de valores mobiliários dos EUA. A empresa diz ter seguido os princípios contábeis geralmente aceitos (Gaap, na sigla em inglês). Talvez tenha, mas após três anos de reformas na esteira dos escândalos que assolaram o setor corporativo americano, o caso da Halliburton ilustra como os lucros continuam sendo suscetíveis a manipulações. E o motivo é que as normas contábeis dão às empresas grande liberdade para usar estimativas no cálculo de seus lucros. Esses ajustes deveriam dar aos acionistas um quadro mais fiel do que está acontecendo em uma empresa em um determinado momento, e freqüentemente eles fazem isso. Isso tem a ver com que os contadores chamam de regime de competência, que é um dos fundamentos da contabilidade. Ao provisionar, ou atribuir, receitas a períodos específicos, eles pretendem alocar receita para o trimestre ou ano em que ela foi efetivamente ganha, embora não necessariamente recebida. Do mesmo modo, as despesas são alocadas para o período em que as vendas foram feitas, não necessariamente quando o dinheiro foi gasto. O problema com os vagos números de lucros de hoje não é o regime de competência em si. É que investidores, analistas e administradores de recursos estão tendo cada vez mais dificuldades para descobrir quais julgamentos as empresas fazem para surgir com essas provisões, ou estimativas. Os escândalos da Enron, WorldCom, Adelphia Communications e outras são lembranças fortes de que os investidores podem perder bilhões de dólares ao não prestarem atenção à maneira como as empresas calculam seus lucros. Esse perigo foi enfatizado mais uma vez em 22 de setembro, quando a gigantesca Fannie Mae, instituição que financia hipotecas nos EUA, disse que sua principal autoridade reguladora descobriu que ela fez ajustes contábeis para maquiar seus lucros e, em pelo menos uma ocasião, atingir metas de compensação com bônus. A companhia disse que está cooperando com os investigadores do governo. A preocupação maior é que as demonstrações financeiras das empresas estão sempre incompletas, inconsistentes, ou simplesmente pouco claras, tornando um pesadelo diferenciar os fatos da fantasia. Trevor S. Harris, principal analista contábil do Morgan Stanley, diz: "O sistema de demonstrações financeiras está completamente quebrado". De fato, as demonstrações financeiras são hoje mais difíceis do que nunca de serem entendidas. Elas estão carregadas de um jargão difícil de compreender e de números que não deixam rastro. Elas são confusas, com categorias inconsistentes, lançamentos vagos e ajustes ocultos que disfarçam o quanto as estimativas mudam os lucros de uma companhia de trimestre para trimestre, diz Donn Vickrey, ex-professor de contabilidade e um dos fundadores da Camelback Research Alliance, uma firma de Scottsdale , Arizona, contratada por investidores institucionais para detectar lucros inflados. A conclusão: as três principais peças do balanço - resultados, balanço patrimonial e fluxo de caixa -, que os investidores e analistas precisam para detectar a contabilidade agressiva e obter um quadro completo do valor de uma companhia, estão fora de sincronia umas com as outras. Com freqüência, as demonstrações de resultado e de fluxo de caixa não cobrem os mesmos períodos. "Até mesmo um gênio tem problemas para juntar as duas porque itens diferentes são agregados de maneiras diferentes", diz Patricia Doran Walters, diretora de análise do CFA Institute, a associação profissional que testa e certifica análises financeiras. "Você tem de adivinhar muita coisa para tentar chegar perto." Muitas das reformas adotadas pelo Congresso americano e pela SEC não vão reparar a situação. A maior parte delas foi feita para policiar as pessoas que fazem as estimativas, ao invés das próprias estimativas. E algumas mudanças ainda precisam ser efetivadas. Sem dúvida, executivos das empresas e comitês de auditoria estão prestando mais atenção aos números, e especialistas em contabilidade acreditam que há poucos exemplos hoje de fraudes em grande escala. Mas isso deve ser esperado em uma economia mais forte. A grande dúvida é se o aumento da vigilância está ou não rendendo estimativas mais realistas, ou apenas mais estimativas documentadas por muitas suposições e racionalizações. Só saberemos a resposta quando a economia começar a claudicar e os lucros forem pressionados.

As normas contábeis dão às empresas grande liberdade para usar estimativas no cálculo de seus resultados

Estudos acadêmicos recentes já sugerem que o abuso das estimativas está difundido em um grande número de companhias. E isso é suficiente para fazer Wall Street entrar em ação. Ciente de que os executivos têm oportunidades tremendas para manipular os números, o mercado está alerta, investigando mais do que nunca as estimativas que entram na formação dos lucros. Ao longo dos últimos dois anos, bancos de investimento melhoraram seus já complexos programas de computador para peneirar milhares de empresas e descobrir aquelas que fazem estimativas muito agressivas. Na medida em que analistas e investidores mergulham mais fundo nesses exercícios financeiros, eles estão encontrando algumas surpresas desagradáveis. Os jogos contábeis estão espalhando-se para além dos resultados, na medida que algumas companhias começam a jogar mais rápido e mais soltas na maneira como contabilizam os fluxos de caixa. Isso é um choque porque os investidores sempre acreditaram que o caixa era sacrossanto e difícil de ser manipulado. Agora eles estão descobrindo que o caixa é tão vulnerável à manipulação legal quanto os lucros. Empresas que vão da Lucent Technologies à Jabil Circuit têm reforçado seus fluxos de caixa vendendo seus recebíveis - o que os clientes devem a elas - para terceiros. "Os administradores, cientes do que os analistas estão em busca, dizem: ´Vamos fazer o fluxo de caixa parecer melhor´. E assim o jogo segue", diz Charles W. Mulford, professor de contabilidade do DuPree College of Management. Um porta-voz da Lucent diz que a companhia vende recebíveis para levantar caixa de uma forma mais barata do que conseguiria tomando dinheiro emprestado. A Jabil não respondeu às perguntas formuladas pela "BusinessWeek". Mesmo com a vigilância reforçada de Wall Street, muitos profissionais acreditam que a situação não vai melhorar no curto prazo - e que poderá até piorar. Isso porque os responsáveis pelo estabelecimento dos padrões contábeis no Financial Accounting Standards Board (Fasb) estão mergulhados num esforço para exigir que as empresas venham a fazer ainda mais estimativas - aumentando o potencial de mais manipulação de seus resultados finais. Um exemplo: o Fasb está exigindo que as empresas estimem as mudanças nos valores de uma crescente lista de ativos e passivos, incluindo contratos de derivativos. No final das contas, as companhias terão de fazer ajustes correspondentes, para mais ou para menos, em seus lucros. Há uma certa lógica na posição do Fasb. Ele quer melhorar a maneira como as mudanças nos valores dos ativos são refletidas nas demonstrações financeiras, porque elas podem ter um impacto significativo sobre o valor de uma companhia. O Fasb argumenta que as novas estimativas deverão ser confiáveis, uma vez que muitas serão baseadas em preços de mercado conhecidos. Infelizmente, outras dependerão de pouco mais que suposições, que por sua vez dependerão de outras suposições. "Quando você faz isso, reduz a confiabilidade dos números e abre as portas para as fraudes", diz Ross L. Watts, professor de contabilidade na Universidade de Rochester. O Fasb está compreensivelmente temeroso em impor ainda mais regras às empresas. Ele gastou os últimos três anos, e muito capital político, na briga para fazer com que as opções de ações sejam reconhecidas como despesas e limitar as chamadas entidades fora do balanço. O presidente do Fasb, Robert H. Herz, acha que não é o momento de fazer mais exigências. Depois das reformas recentes, diz, as empresas "estão cansadas". Cansadas, talvez, mas não o suficiente para renunciar aos jogos de números. Até mesmo entre os executivos que nem sonhariam em cometer fraudes, há muitos que estão prontos para dar uma maquiada nos números, num esforço para satisfazer os investidores.

As demonstrações financeiras estão carregadas de jargão e de números que não deixam rastro

Uma pesquisa feita pela Duke University junto a diretores financeiros de 401 empresas, em novembro de 2003, dois de cada cinco disseram que iriam usar meios legais para contabilizar receitas antecipadamente se isso ajudasse a atingir as metas de lucros. Mais de um em cada grupo de cinco ajustariam certas estimativas ou venderiam investimentos para contabilizar receitas maiores. Estimativas contábeis enganosas feitas por executivos provocaram pelo menos metade das 323 republicações de balanços exigidas pelas autoridades no ano passado, segundo dados da consultoria Huron Consulting Group. O custo desse ofuscamento deliberado é alto. Estudos com dados dos últimos 40 anos de Richard G. Sloan, da University of Michigan Business School, e Scott Richardson, da Wharton School da Universidade da Pensilvânia, as empresas que fazem as maiores estimativas - e assim reportam os lucros mais exagerados - inicialmente atraem os investidores como uma lâmpada atrai os insetos. Posteriormente, quando as estimativas se mostram exageradas, suas ações caem. Em média, elas ficam atrás das ações de empresas de porte similar em 10 pontos percentuais ao ano, custando aos investidores mais de US$ 100 bilhões em valor de mercado. Essas companhias também apresentam uma maior incidência de republicação de balanços, são mais vítimas de ações fiscalizatórias da SEC e de processos envolvendo a contabilidade, observa Neil Baron, presidente do conselho de administração da Criterion Research Group, um centro de análises de Nova York. "Dadas as pressões sobre os executivos para que eles atinjam os lucros esperados, isso não surpreende", diz. É por isso que mais administradores de recursos estão usando planilhas sofisticadas para identificar companhias que fazem estimativas agressivas e as que não fazem isso. Sloan e Richardson descobriram que se o investidor tivesse vendido a descoberto as empresas com as maiores estimativas e comprado ações daquelas com as menores estimativas, eles teriam superado o mercado em 37 dos 40 anos pesquisados, e por uma margem muito grande - 18 pontos percentuais ao ano. Goldman Sachs e Barclays, entre outras instituições, estão empregando os modelos Sloan-Richardson para guiar seus investimentos. Estrategistas de corretoras como a Sanford C. Bernstein , Crédit Suisse First Boston, e UBS construíram portfólios-modelos usando técnicas parecidas. Outros em Wall Street tentam obter uma vantagem indo ainda mais longe: estão desconstruindo e reconstruindo as demonstrações financeiras das empresas. Harris, do Morgan Stanley, recentemente liderou um projeto de 18 meses com o objetivo de filtrar os efeitos das normas contábeis que podem distorcer os resultados operacionais. Sua equipe juntou cerca de 2,5 milhões de pontos de dados e realizou incontáveis discussões com analistas de companhias individuais. Num dos testes iniciais, o exercício determinou que o lucro operacional antes dos impostos da Verizon Communications em 2003 foi de US$ 13,7 bilhões, ao invés dos US$ 16,2 bilhões que o analista do Morgan Stanley para o setor de telecomunicações havia calculado anteriormente, usando os princípios contábeis. Isso aconteceu principalmente porque os princípios permitem às empresas incluir estimativas do quanto seus planos de pensão vão ganhar como lucros correntes. Um porta-voz da Verizon disse que a companhia tem sido muito cuidadosa no anúncio de suas estimativas e em dizer o quanto sua conta previdenciária alavanca os lucros. Por enquanto, os investidores possuem, em grande parte, apenas os seus próprios mecanismos para avaliar os números das empresas. Os auditores - a primeira linha de defesa contra a desonestidade financeira - estão sob a fiscalização de um novo comitê supervisor, que está reescrevendo os padrões de auditoria. Outras reformas contábeis ainda serão levadas a efeito. A exigência na lei Sarbanes-Oxley, de julho de 2002, que força executivos e diretores a estabelecerem controles internos a se responsabilizarem pelas demonstrações financeiras não estará em plena força até o ano que vem. Há muita coisa que as autoridades reguladoras poderiam fazer agora para melhorar a qualidade das informações financeiras. O Fasb deveria deixar de lado alguns de seus projetos menos prementes e voltar toda a sua atenção aos esforços para tornar mais fácil para os investidores decifrarem os números das companhias. Se a forma e a apresentação das demonstrações financeiras fossem mais claras e mais consistentes, os investidores estariam mais capacitados para detectar truques contábeis. Por exemplo, as demonstrações de resultados poderiam ser repensadas para que se distinguisse os lucros obtidos com a venda de produtos daqueles que vêm das estimativas em constante mudança. "As pessoas querem entender a subjetividade envolvida nesses diferentes números", diz Walters, do CFA Institute. A demonstração de fluxo de caixa também precisa ser melhorada. As autoridades precisam mudar a apresentação imagem-no-espelho, na qual os aumentos no fluxo de caixa aparecem como números negativos e as quedas, como positivos. Elas também precisam definir mais claramente o que é um item operacional, financeiro e de investimento. Com informações e demonstrações financeiras melhores e mais consistentes, os investidores poderiam recompensar e punir companhias com base na qualidade de suas contabilidades. Como as empresas usarão mais estimativas no futuro, elas terão ainda mais oportunidades para maquiar seus lucros. Para evitar problemas futuros, os investidores precisam de um quadro claro das finanças de uma empresa. Os investidores não deveriam ter de esperar por outra Enron para que as autoridades reguladoras resolvam esses problemas.