Título: Os herdeiros de Lincoln
Autor: Paulo Skaf
Fonte: Valor Econômico, 06/05/2005, Opinião, p. A8

Em 1982, um grupo de 50 historiadores e cientistas elegeram Abraham Lincoln, com ampla aprovação também do público, o maior presidente dos Estados Unidos em todos os tempos. Certamente, pesou muito nessa escolha o seu gigantesco esforço para preservar a unidade do país em meio à Guerra de Secessão, terminada em 9 de abril de 1865, com a rendição dos confederados. Lincoln não assistiu à consolidação da paz, pois foi assassinado cinco dias depois, mas deixou bases muito sólidas e eficazes para o desenvolvimento e afirmação do capitalismo norte-americano, cuja vitalidade edificou a economia mais bem-sucedida do planeta. Estadistas verdadeiros têm os pés no presente e os olhos no futuro. Lincoln foi um desses raros líderes. Prova disso é que, bem antes do final da guerra, já vislumbrava como seriam os Estados Unidos emergentes do conflito, delineando uma nação mais próspera e evoluída. Uma das principais medidas que assegurariam o cumprimento dessa meta foi adotada em 20 de maio de 1862, três anos antes da rendição dos confederados. Tratava-se do Homestead Act (Ato da Propriedade Rural), assinado pelo presidente, que garantia a transferência de terras do Estado para pequenos agricultores, incluindo os escravos negros, definitivamente libertados pela guerra. A lei foi - de forma literal - uma das sementes do maior mercado consumidor do mundo. Antes mesmo do fim da guerra, quase 20 mil pedidos de assentamento foram registrados. A gênese da competente e desenvolvida agricultura dos Estados Unidos baseia-se, portanto, numa visão liberal e numa avançada concepção de mercado, inclusive pelo fato de os assentados terem arcado com o pagamento das terras. Nada foi dado gratuitamente. Todos tiveram de trabalhar muito para produzir e pagar pela dádiva da terra. A saga dos produtores agropecuários norte-americanos não precisa ser descrita. Sua síntese é uma história de sangue, suor e lágrimas. História com final feliz, um prêmio à competência e obstinação de um povo que soube forjar sua grande economia na justiça matemática das leis de mercado - do cultivo da terra ao mais sofisticado produto industrial. É exatamente esse o princípio consagrado na decisão da Organização Mundial do Comércio sobre os subsídios à produção e exportação do algodão nos Estados Unidos. A condenação da prática, agora referendada pelo Órgão de Apelação da entidade, faz justiça à história econômica do país. Significa, também, um passo importante para o fortalecimento da OMC como instituição reguladora do comércio internacional, objetivando a prevalência do livre comércio, bem como sua definitiva prevalência no setor agrícola.

Anúncio dos EUA sobre a resolução da OMC é importante referência no combate aos subsídios agrícolas

O relatório final do Órgão de Apelação também é muito significativo para as nações emergentes, em particular as de vocação agrícola, como o Brasil. É o caso de países africanos, como Benin e Burkina Faso, que vivem quase exclusivamente da cultura algodoeira. A decisão contribui, ainda, para que o comércio mundial de algodão torne-se mais justo e livre. Este é um fator fundamental para os mercados consumidores, inclusive os numerosos segmentos industriais que têm nessa matéria-prima a base essencial de sua atividade produtiva. Em alguns anos nosso país deverá duplicar ou até mesmo triplicar a sua produção. Já a partir de 2006, as exportações brasileiras de algodão deverão aumentar cerca de 20%. Se os Estados Unidos eliminarem todos os subsídios ao algodão, as suas exportações cairão aproximadamente 40%. Ou seja, será criado atraente vácuo no mercado mundial, a ser legitimamente disputado pelo Brasil e outras nações produtoras. Em 2004, os Estados Unidos exportaram cerca de 2,7 milhões de toneladas do algodão. Este volume é equivalente a 40,7% das vendas mundiais do produto. Para efeito de comparação, nota-se que o Brasil comercializou no mercado externo somente 371 mil toneladas. Outros indicadores demonstram o peso da decisão da OMC. O Ministério da Agricultura do Brasil apresenta dados expressivos: os Estados Unidos destinaram US$ 12,5 bilhões em subsídios para o algodão entre 1999 e 2003. Os produtores obtiveram com a venda do produto US$ 13,4 bilhões. Ou seja, ganharam pouco mais de um dólar para cada dólar subsidiado. Por conta desse mecanismo artificial de ganho, o Brasil teve perdas de US$ 480 milhões no período. Diante de todas essas questões, a comunidade econômica brasileira e mundial deve aplaudir a decisão dos Estados Unidos de cumprir a resolução da OMC, eliminando em julho próximo os subsídios às exportações do algodão. A aplicação prática da medida certamente abrirá amplas perspectivas para o comércio mundial do produto, estabelecendo um novo patamar para a concorrência, ancorado de forma mais concreta nas leis de mercado. A vigorosa economia norte-americana, que representa um terço do PIB planetário, tem na deliberação da OMC sobre o algodão excelente oportunidade de dar ao mundo um exemplo de respeito às instituições internacionais e acordos multilaterais. Os herdeiros do Homestead Act e da visão histórica do estadista Abraham Lincoln, assim como seus antepassados, não precisam de benesses para produzir. Saberão, sem subsídios, a exemplo dos produtores brasileiros, disputar o mercado internacional com a máxima competência e dignidade.