Título: FGTS cobiçado
Autor: Luciana Monteiro e Flavia Lima
Fonte: Valor Econômico, 09/05/2005, EU &, p. D1

Mais um setor está de olho nos recursos depositados no Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), uma fortuna de cerca de R$ 160 bilhões, segundo dados da Caixa Econômica Federal. Depois da Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa) - que hoje tem o proposta de uso de parte do fundo para investimentos em ações em análise na Câmara dos Deputados - é a vez da previdência privada tentar atrair um naco desse dinheiro para seus planos. Representantes do setor estudam negociar com o governo o uso dos recursos para reduzir o déficit previdenciário e desenvolver a poupança de longo prazo, reforçando a posição da previdência complementar como um dos grandes financiadores da dívida pública. A idéia é que a contribuição hoje feita pela empresa ao FGTS seja deslocada para um plano aberto empresarial ou fundo de pensão. O funcionário teria de depositar, por sua conta, o mesmo valor que a empresa. Segundo Osvaldo do Nascimento, presidente da Associação Nacional da Previdência Privada (Anapp), o setor sugere ainda que os planos de aposentadoria que recebessem esses recursos tivessem regras mais conservadoras, como forma de reduzir o risco das aplicações. Para o empregado, o principal atrativo seria poder contar com uma rentabilidade acima da Taxa Referencial (TR) mais 3% ao ano oferecida pelo fundo de garantia. Hoje o FGTS oferece a menor rentabilidade se comparado às aplicações financeiras, perdendo até mesmo para a poupança, que paga TR mais 6% ao ano. Como exemplo, os planos de tipo PGBL ou VGBL da categoria renda fixa - a mais representativa do setor de previdência aberta - registram rendimento médio de 4,94% no acumulado do ano até abril, segundo dados do site Fortuna. Em igual período, os recursos aplicados no fundo de garantia ganharam apenas 1,75%. O estudo do uso do FGTS pela previdência complementar consta em uma proposta mais ampla - a do Plano Diretor de Mercado de Capitais - que reúne cerca de 80 entidades. Para uma delas, a Associação Brasileira das Entidades Fechadas de Previdência Complementar (Abrapp), a proposta, em fase embrionária, deve causar polêmica. "As sugestões devem encontrar barreiras em especial do setor imobiliário, que faz mais uso do FGTS", diz um de seus diretores, Antonio Jorge Vasconcelos da Cruz. Especialistas em previdência avaliam que, se aprovado, o uso do FGTS deve impulsionar o crescimento de um nicho específico, o de planos para as empresas de menor porte. Hoje a maior parte das companhias de médio e grande porte já contam com planos para seus funcionários. Maurício Araújo, consultor especialista em previdência da Hewitt Associates, lembra que a proposta pode, a princípio, desagradar o governo, que perderia parte da receita financeira gerada atualmente pelos recursos do FGTS. "Mas são fatores atenuantes o fato de as aplicações no fundo serem usadas para a compra de títulos públicos e formarem uma poupança de longo prazo." Para as empresas, diz ele, nada muda. Sem gastos adicionais, elas apenas deslocariam as contribuições feitas do fundo de garantia ao plano, enquanto o empregado seria quem efetivamente colocaria a mão no bolso. Araújo não vê problemas nisso. "O empregado teria de fazer isso de qualquer jeito se quisesse ter um plano de previdência", diz. Na briga pelo FGTS, seguradoras e fundos de pensão não estão sozinhos. Depois das bem-sucedidas ofertas de ações da Petrobras e da Vale do Rio Doce, nas quais foi permitido aplicar parte do FGTS o mercado acionário também tem levantado a bandeira do uso dos recursos na bolsa. A Bovespa encaminhou proposta de projeto à Câmara dos Deputados em 2003, por meio do então deputado Paulo Bernardo Silva (PT-PR), sobre o uso dos recursos do fundo de garantia na compra de ações. Hoje, o documento está em análise na Comissão de Trabalho, Administração e Serviço Público (CTASP). A proposta é a mesma que já havia sido encaminhada em 2002 pela bolsa por intermédio do senador Antônio Carlos Magalhães Júnior (PFL-BA) e que foi barrada na Comissão de Assuntos Econômicos e Sociais do Senado. A idéia da Bovespa é que parte dos recursos do FGTS possa ser usada pelos trabalhadores que têm interesse em investir no mercado de ações. José Roberto Mubarack, assessor de relações institucionais da bolsa, diz que o dinheiro do fundo de garantia seria utilizado em ofertas públicas primárias, ou seja, no lançamento de empresas no mercado. O trabalhador poderia dispor somente de um percentual - a ser definido anualmente pelo Conselho Curador do FGTS - dos recursos depositados pela empresa a partir do ano que o projeto fosse aprovado, lembra o executivo. "Não iríamos, portanto, mexer no estoque, para não criar problemas para os setores habitacional, de infra-estrutura e saneamento básico." A proposta da bolsa prevê também que só poderiam ser adquiridos papéis de empresas com boas práticas de governança corporativa. "Somente ações de companhias que estivessem listadas num dos níveis 1 ou 2 da Bovespa ou ainda no Novo Mercado", diz Mubarack. Além disso, o trabalhador teria garantia de rentabilidade de pelo menos TR mais 3% dada pela empresa emissora das ações durante um período determinado. "Depois desse prazo, o investidor decidiria se manteria ou não a aplicação." Seria algo feito nos moldes do PIBB, fundos de ações atrelado ao IBrX-50 com principal garantido, lançado pelo BNDES no ano passado. Para evitar que a aplicação fosse feita sem avaliar os riscos, Mubarack diz que o trabalhador teria de assinar documento constando, de forma clara e didática, todos os riscos inerentes à aplicação em ações. Mas o presidente da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), Marcelo Trindade, vê com ressalvas o uso do FGTS nas aplicações em bolsa. "O investimento em ações precisa ser consciente", diz. Ele lembra que, no caso de Petrobras e Vale, as ofertas foram bem-sucedidas, mas como a bolsa de valores é um mercado de alto risco, os recursos poderiam ter virado pó. "E como o trabalhador iria reagir se, depois de perder o emprego, fosse retirar o FGTS e não tivesse mais o dinheiro?", questiona Trindade. "Os gestores dizem que qualquer aplicação rende mais que TR mais 3%, mas o investidor precisa estar ciente de que há riscos em ações e essa tese do retorno garantido não está necessariamente correta." Na opinião de Trindade, os recursos do FGTS deveriam ser liberados não só para aplicar em bolsa, mas também em papéis de renda fixa privados e títulos públicos. "Aí sim estaríamos dando uma opção de escolha mais ampla para o trabalhador." O presidente da CVM também vê com certa reserva iniciativas como a do BNDES com o PIBB ou mesmo do PoupAção, que o banco planeja lançar garantindo pelo menos o rendimento da poupança. "Qualquer retorno fixo dado ao aplicador de bolsa induz o sujeito a achar que não há risco envolvido na operação", diz Trindade. "Qualquer incentivo artificial que se dê para o investidor hoje estará criando o desiludido de amanhã."