Título: Custos e oportunidades da política de juros no Brasil
Autor: Antônio Corrêa de Lacerda
Fonte: Valor Econômico, 13/06/2005, Opinião, p. A10

Selic alta provoca substancial transferência de renda ao setor financeiro

Política econômica é uma questão de escolhas, e as evidências denotam as incoerências do conjunto da política macroeconômica - monetária, cambial e fiscal - praticada no Brasil. Pela nona vez consecutiva, em maio, o Comitê de Política Monetária (COPOM) aumentou a taxa de juros (Selic), dessa vez em 0,25 ponto percentual, para 19,75% ao ano. Com o novo aumento, a taxa de juro real, considerando a expectativa média de inflação para os próximos doze meses, atinge 13,5%. É a maior taxa de juros do mundo. O argumento é a meta de inflação. Embora a sistemática de aplicação do regime de metas possa por si só ser questionada, há outros elementos que apontam para um equívoco de rota: a fixação da meta, o horizonte em que se pretende atingi-la e o tratamento dos preços administrados, assim como da indexação, dos choques externos, etc. Para além dessa discussão do regime de metas, há outros fatores importantes que precisam ser levados em conta nas escolhas das estratégias de política econômica. Até mesmo numa visão puramente ortodoxa, a terapia em vigor provocaria muitos pontos de discussão. Por exemplo, o "timing" para o efeito da elevação das taxas de juros sobre o comportamento da inflação, mesmo admitindo-se a hipótese, também altamente questionável, de inflação de demanda. Uma taxa de juros elevada por um longo período provoca efeitos deletérios para a economia, principalmente sobre nível de atividades, investimentos, taxa de câmbio e o financiamento da dívida pública. Nada sustenta que o nível de juro real atualmente praticado seja o necessário para cumprimento da meta. O efeito sobre o nível de atividades decorre de aspectos objetivos e subjetivos. Os fatores objetivos estão relacionados ao encarecimento do crédito e financiamento, afetando principalmente o mercado de bens duráveis, mais dependente dessa modalidade de venda. Os fatores subjetivos decorrem das expectativas dos consumidores quanto ao futuro do seu emprego e renda, o que tende a postergar ou mesmo cancelar decisões de consumo. O segundo impacto, muito importante, ocorre sobre os investimentos (Formação Bruta de Capital Fixo). Os investimentos produtivos só ocorrem quando os empreendedores têm confiança na continuidade do crescimento da economia. Afinal, ninguém vai investir para ficar com a planta ociosa. Uma taxa de juros elevada diminui a propensão a investir dos agentes. O custo de oportunidade elevado aumenta a "preferência pela liquidez", para usar um termo keynesiano. Na incerteza, os empresários preferem reter moeda a investir na produção, uma vez que vale muito mais a pena aplicar no mercado financeiro do que empreender. A formação bruta de capital fixo - total de investimentos públicos e privados, nacionais e estrangeiros -, que vinha em forte recuperação desde 2003, caiu pelo segundo trimestre consecutivo. Isso é um péssimo sinalizador. Recuperar os investimentos é uma condição básica para o crescimento sustentado da economia, e ainda convivemos com uma taxa de investimentos abaixo de 20% do PIB. Para sustentar o crescimento econômico de 5% a 6%, ao ano seriam necessários investimentos da ordem de 25% do PIB. Países asiáticos, por exemplo, investem acima de 30% do PIB ao ano.

Para a economia crescer 5% ao ano, é necessário investir ao menos 25% do PIB; Brasil não chega a investir 20%

O terceiro efeito é sobre a taxa de câmbio. Ao praticarmos a maior taxa de juros reais do planeta, isso distorce o valor da nossa moeda, relativamente às demais. O real apreciou-se significativamente em relação ao dólar norte-americano nos últimos meses, enquanto as moedas da China, Índia, por exemplo, grandes concorrentes do Brasil, mantiveram-se praticamente estáveis. Uma valorização artificial da taxa de câmbio afeta não só a qualidade das exportações, mas também as decisões de investimentos. O impacto sobre as exportações só não se faz sentir no total da balança comercial porque as commodities exportadas pelo Brasil encontram-se em alta no mercado internacional e muitas exportações de manufaturados ainda refletem contratos fechados no passado, diante de outra realidade cambial. Além disso, o câmbio, como um dos principais preços da economia, não afeta somente as exportações. O subsídio à importação, via dólar barato, é um desincentivo à produção local, que concorre em desigualdade de condições. Isso afeta as decisões de investimentos das filiais locais das multinacionais, assim como a estratégia das empresas brasileiras. O quarto, e não menos importante, é o impacto sobre o custo fiscal do processo. O aumento da taxa de juros Selic em 3,75 pontos percentuais desde os 16%, vigentes de abril a setembro do anos passado, provoca um aumento no custo de financiamento da dívida pública de cerca R$ 20 bilhões no ano. Dos R$ 874 bilhões da dívida pública interna, 58,5% são pós-fixados, atrelados ao desenvolvimento da Selic. Isso anula o esforço fiscal de elevação de tributos e de restrição de investimentos públicos. Ao mesmo tempo, provoca-se uma substancial transferência de renda ao setor financeiro e aos rentistas, na medida em que se aumenta a remuneração das aplicações financeiras, em detrimento de serviços e investimentos públicos. Por todos esses fatores, a política econômica ultra-conservadora em prática no Brasil deve ser questionada. O fato de que não estamos aproveitando as condições internacionais ainda extremamente favoráveis ao Brasil só enaltece o erro estratégico. Ao invés de centrar esforços excessivamente no curto prazo, deveríamos criar as condições para o crescimento dos investimentos. Da mesma forma, é imprescindível consolidar o ajuste das contas externas, por meio de uma agressiva política exportadora - menos dependente das exportações de commodities - e fortalecimento das reservas cambiais. É preciso criar as condições para ter maior autonomia, mesmo quando as condições internacionais não forem tão favoráveis quanto têm sido. Essa sim seria uma forma de precaução justificável, aproveitando as lições das experiências bem sucedidas de vários países em desenvolvimento, em contraste com o nosso próprio passado recente.