Título: Estratégias e desafios do comércio exterior (VIII)
Autor: Ricardo Sennes e Alexandre de F. Barbosa
Fonte: Valor Econômico, 20/06/2005, Opinião, p. A14

Brasil busca maior intercâmbio comercial com países africanos

Se as recentes visitas do presidente Lula ao continente africano têm permitido ao Brasil se encontrar com o seu passado e suas dívidas sociais e culturais, elas abrem também novas perspectivas para as relações geopolíticas e econômicas. Antes de emitir julgamentos precipitados sobre o tema, torna-se necessário avaliar aspectos desse relacionamento que em geral passam desapercebidos, como, por exemplo, o fato de o saldo comercial com os africanos - se excluído o petróleo - representar mais de 10% do nosso superávit recorde alcançado no ano passado. As relações econômicas entre o Brasil e o continente africano estão recheadas de peso histórico. O historiador Luiz Felipe d'Alencastro ensina que as duas pontas do Atlântico Sul, representadas pelo nordeste açucareiro e por Angola, compunham, nos séculos XVII e XVIII, um espaço colonial integrado, exercendo funções complementares: a primeira caracterizava-se pela produção escravista, enquanto a segunda cuidava da reprodução de escravos. A metrópole se incumbia de estruturar e manter os elos desta cadeia de comércio, absorvendo parte expressiva do excedente. O Brasil não era ainda uma nação, nem dispunha de mercado interno e vínculos econômicos regionais. O que se intenta hoje é um novo tipo de complementaridade, capaz de permitir um maior intercâmbio comercial e produtivo entre o Brasil e os países africanos, adensando o intercâmbio Sul/Sul do planeta. Em termos comerciais, percebe-se que a corrente de comércio do Brasil com a África tem crescido de forma expressiva, saltando de 3,2% para 6,5% do total do comércio brasileiro entre 1998 e 2004, ainda que esteja concentrada em alguns poucos produtos. No ano passado, o país apresentou um déficit de quase US$ 2 bilhões com a África, o qual se deve em grande medida às importações de petróleo provenientes da Nigéria. Se eliminado o setor de petróleo e combustíveis, o superávit comercial brasileiro ascende a US$ 3,5 bilhões. Do lado das exportações brasileiras, estas podem ser divididas em três grandes nichos de inserção externa. De um lado, os produtos básicos como açúcar, cereais, óleo de soja e minério de ferro representam cerca de 45% das vendas externas brasileiras, contra 26% no caso dos setores industriais com escalas de produção e competitivos internacionalmente (carnes, papel, aço, química orgânica, plásticos, produtos cerâmicos e móveis); e outros 22% representados principalmente pelo setor automotivo, além de máquinas e materiais elétricos. Além disso, em alguns casos, a participação do continente africano tem deixado de ser apenas marginal: nos setores de veículos e seus componentes, plásticos e produtos cerâmicos, a África já responde por 7% de nossas exportações totais; percentual que se eleva para 9% no caso das exportações de carnes e para 35% no caso do açúcar e produtos de confeitaria. Em termos de investimentos externos diretos, entretanto, a presença brasileira no continente africano é bastante reduzida estando, em grande medida, restrita às empresas do setor de construção civil. Além das vantagens de um mercado ampliado, como no caso da Sacu (União Aduaneira da África Austral) - composta pela África do Sul, Botswana, Lesoto, Namíbia e Suazilândia - a expansão das multinacionais brasileiras do setor industrial permitiria atingir mais facilmente o conjunto do continente africano ou até mesmo aproveitar as vantagens tarifárias conferidas pela UE a estes países.

Indústrias brasileiras podem aproveitar as vantagens tarifárias conferidas pela União Européia ao continente

Vale lembrar ainda que a assinatura de um acordo preferencial de comércio entre o Mercosul e a Sacu, em dezembro de 2004, promoveu a redução de tarifas de 950 produtos de ambos os lados. A oferta deste bloco africano abrangeu além de vários produtos do setor de alimentos, cerca de 200 itens do setor de máquinas, aparelhos e materiais elétricos, abrindo espaço para fluxos de comércio mais diversificados entre os dois blocos. Tratando-se do continente africano, é justamente com a África do Sul que as nossas relações de interdependência podem ser mais reforçadas. Este país inclusive já participa, junto com o Brasil e a Índia, do Diálogo IBAS, por possuir uma estrutura industrial diversificada e presença marcante na nova geopolítica internacional. Entre 1998 e 2004, o Brasil, que apresentava um pequeno déficit com este país, saltou para um superávit não desprezível de cerca de US$ 800 milhões em 2004. No período, as exportações brasileiras para a África do Sul multiplicaram por quase cinco vezes, contra uma expansão global de cerca de 90% das nossas vendas externas. É importante ressaltar também que os setores de automóveis e componentes e de máquinas, equipamentos e materiais elétricos respondem juntos por 45% e 60%, respectivamente, das exportações e do saldo comercial obtido pelo Brasil com este país para o ano de 2004. Entretanto, apesar do forte crescimento das exportações destes dois setores no período recente, e mesmo com as vantagens obtidas no âmbito do acordo preferencial Mercosul/Sacu, cabe enfatizar que tais produtos, especialmente nos segmentos mais dinâmicos, dependem em grande medida do comércio intra-firma. Não à toa, observa-se que os maiores fornecedores da África do Sul são justamente a Europa, os Estados Unidos, o Japão e a China. No caso de máquinas e equipamentos, o Brasil é o 19º exportador, com 1,2% das importações totais sul-africanas. No setor automotivo, ocupamos a 11ª posição, com 2% das importações deste país, enquanto Alemanha e Japão juntos representam 50% do mercado. Já do lado das exportações da África do Sul para o Brasil, observa-se a importância dos segmentos de minérios e combustíveis (20%), ferro e aço (17%), produtos químicos orgânicos e adubos e fertilizantes (15%), pérolas naturais ou cultivadas (11%) e máquinas e equipamentos mecânicos (6%). Nos últimos seis anos, as compras externas brasileiras deste país têm se mantido estagnadas, perfazendo um valor anual de cerca de US$ 250 milhões. Tudo leva a crer, portanto, que a dinamização das relações econômicas entre as duas regiões - América Latina e África - a partir do papel protagonista de Brasil e África do Sul não pode depender de simples acordos preferenciais ou geopolíticos, por mais estratégicos que estes sejam. Neste contexto, parcerias produtivas e acordos setoriais mostram-se vitais, definindo nichos de complementaridade entre os dois países e contando com o apoio do empresariado nacional de ambos os lados. Enfim, para se gestar um processo de internacionalização ativa por parte da economia brasileira, urge tornar mais complexos os laços que nos unem a outras regiões econômicas, como a africana, diversificando o comércio para outros segmentos além dos tradicionais, e ampliando os investimentos diretos externos, inclusive como forma de atingir novos mercados.