Título: Com a ajuda do Brasil, Doha caminha para acordo medíocre
Autor: Pedro de Camargo Neto
Fonte: Valor Econômico, 09/11/2005, Opinião, p. A10

País sinaliza aceitar menos do que conquistou na OMC, na reunião de Hong Kong

A reunião ministerial da Organização Mundial de Comércio (OMC) a ser realizada em dezembro na cidade de Hong Kong provavelmente produzirá um acordo medíocre. Infelizmente deverá estar muito longe de atender mesmo parcialmente o prometido aos países em desenvolvimento em Doha, Qatar, em 2001. O mais triste é que tudo indica que o Brasil acabará aceitando a falta de avanço. Vencer as resistências dos países desenvolvidos na questão agrícola não é mesmo fácil. Vivemos, porém um momento extremamente propício para obter mais do que as informações indicam que será obtido. A opinião pública dos países desenvolvidos tem apoiado fortemente as demandas dos países em desenvolvimento. Existem apoios na imprensa, na academia e nas organizações da sociedade civil dos países desenvolvidos como nunca havíamos visto. O mundo espera um comércio agrícola eqüitativo que produza condições de desenvolvimento. Infelizmente os países em desenvolvimento terão que esperar mais algumas décadas, pois o Brasil, país, em teoria, líder dos países em desenvolvimento, aparentemente decidiu aceitar pouco. O setor agrícola ficou fora por muitas décadas dos acordos multilaterais de comércio que compunham o antigo Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio (GATT). Somente na Rodada Uruguai, que culminou com a formação da OMC, é que passou a existir um ordenamento mínimo ao comércio agrícola. O Acordo sobre Agricultura obtido após oito anos de negociações ofereceu, porém, muito pouco, pois manteve elevados subsídios e limitadíssimo acesso aos mercados. Incluiu, porém, um artigo que não pode ser esquecido. Ofereceu uma data final para a utilização de subsídios que distorcem o comércio, causando danos. Uma década depois de assinado, a chamada Cláusula da Paz perdeu efeito e hoje, em tese, deveriam os países desenvolvidos estar reduzindo seus subsídios sem nova negociação. A Rodada Doha tem a obrigação de, como mínimo, estruturar questão dos subsídios que causam dano. Garantiria maior facilidade ao cumprimento para um item de acordo da rodada anterior. O Brasil, que teve a competência e coragem de antecipadamente obter uma significativa vitória com o contencioso do algodão, deveria ser o líder desta questão. É triste constatar que após a vitória do algodão, de repercussão tão positiva, o Brasil parece ignorar seus efeitos. Os EUA até hoje não iniciaram o cumprimento da decisão da OMC, reduzindo seus subsídios. Muito pelo contrário. Gastarão este ano o recorde histórico de US$ 4, 7 bilhões subsidiando seus cotonicultores. Este valor é superior ao despendido no período objeto da contestação. O Brasil parece aceitar uma implementação de acordo medíocre para o algodão, que sinaliza um acordo para a Rodada Doha também medíocre, dado o total paralelismo das questões envolvidas. Qual a estratégia do governo federal cabe a ele explicar. Provavelmente, uma explicação geopolítica complexa e nebulosa. O que parece evidente é que no comércio de algodão sairemos perdendo e, na seqüência, toda agricultura acabará com um acordo medíocre em Hong Kong.

Ao se aliarem contra a UE, Brasil e EUA deixam de negociar ações efetivas contra distorções no comércio internacional

O Brasil se apresenta como líder dos países em desenvolvimento. Realmente, em questões de negociação comercial tornou-se mesmo, através da conquista produzida pelos contenciosos agrícolas e a ousadia da criação do G-20 em Cancún. Já vimos que esta liderança é limitada e contestada em outras áreas. Utiliza agora sua posição de líder para ajudar a produzir um acordo de pouco benefício para os países africanos produtores de algodão. A aparente aliança com os EUA na Rodada Doha é difícil de entender. Ao se associarem na pressão contra o imobilismo da União Européia na questão de acesso a mercados, acabaram deixando de lado a efetiva eliminação das distorções no comércio internacional, frutos de subsídios. Acesso a mercados realmente é de grande importância. Não se pode, porém, esquecer que são os EUA que competem com o Brasil, reduzindo nossos mercados, em importantes países em desenvolvimento. Infelizmente muitas vezes de maneira desleal, pois apoiado por subsídios generosos. Os EUA conseguiram, em julho do ano passado, estruturar a negociação agrícola no que é conhecido como "framework" da maneira que lhe convinha. Pode agora sair dizendo que reduzirá 60% de seus subsídios, quando isto na verdade significa que não reduzirá quase nada. Compreender a astúcia dos americanos é fácil. Difícil é assistir o Brasil elogiar esta oferta quando certamente sabe que com ela sequer cumpre o que conquistamos no contencioso do algodão. Triste é ver o Brasil usar sua posição de líder para atingir um acordo medíocre para a agricultura. A competência dos americanos construiu uma estrutura de negociação que pouco ou nada obriga mudarem sua política agrícola. Novas regras com novos limites permitirão que manipulem suas obrigações, continuando a concorrer com o Brasil no mercado internacional com a ajuda de subsídios. Caberá à agricultura brasileira continuar a ter ganhos de produtividade que consigam até mesmo vencer os subsídios. O objetivo do governo deve ser distinto, pois se fosse o de ampliar o comércio agrícola teríamos uma posição diferente. Certamente compreendem corretamente tudo que está em jogo. Infelizmente, o que não obtivermos na mesa de negociação exigirá grandes esforços para compensar no futuro. Sinceramente gostaria de estar equivocado. Teria o governo uma estratégia secreta que produziria pelo menos o fim das distorções no comércio internacional causadas por subsídios? Não resolveria todas as iniqüidades do comércio agrícola, porém daria um importante passo a frente. Não abriria mais o mercado europeu, já o nosso maior cliente, mas avançaria na conquista de acabar com a concorrência desleal no mercado internacional. Pelo menos no algodão obteríamos o que já ganhamos. Não consegui entender a estratégia do governo para a próxima reunião de Hong Kong. Serei o primeiro a me penitenciar caso esteja equivocado. O Brasil, que assombrou os países desenvolvidos com a audácia do G-20 e dois contenciosos que poderiam alterar o comércio agrícola mundial, infelizmente se contenta com um acordo medíocre.