Título: O perigo da livre gastança
Autor: Gonçalves, Marcone
Fonte: Correio Braziliense, 04/05/2010, Economia, p. 11

Especialistas apontam riscos de descontrole fiscal do governo, o que pode aproximar o país da crise fiscal vivida hoje por europeus

O fato de o governo federal estar livre de amarras e limites para o seu endividamento tornou-se uma das principais críticas à Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que hoje completa 10 anos de vigência. Embora a administração Lula tenha evitado o crescimento explosivo da dívida e até reduzido o seu tamanho em relação ao Produto Interno Bruto (PIB), soma das riquezas geradas num ano, há quem veja perigos de descontrole das contas públicas, o que pode aproximar o país da crise da Grécia.

¿Obedecer à LRF não basta. O governo decidiu manter o superavit primário em um nível adequado, ao menos até a crise. De lá para cá, está desfazendo a boa impressão que deixou na sua política fiscal¿, alertou Gustavo Franco, ex-presidente do Banco Central (BC) e atual sócio da Rio Bravo Investimentos. Para o economista, o nosso deficit público, que em março alcançou 3,46% do PIB, se calculado com os mesmos critérios utilizados pelos gregos, não é muito diferente do deles, que está em 11,51% do PIB.

Gustavo Franco aponta erros nos métodos de aferição do resultado das contas públicas no Brasil, que, no seu entendimento, são ultrapassados e cheios de adaptações que não fazem mais sentido. Um exemplo seria o procedimento de não se incluir amortizações de dívida como despesa realizada no exercício. ¿É preciso ter clareza que o nosso problema fiscal está longe de estar resolvido e que o governo está brincando com explosivos quando afrouxa as coisas em nome da condução de políticas ditas anticíclicas que já perderam funcionalidade, ou políticas de caráter eleitoreiro mesmo¿, assinalou.

No período de vigência da LRF, o governo foi favorecido por uma época de maior estabilidade no cenário internacional e pelo crescimento da economia. Com isso, praticamente triplicou os gastos com pessoal, que saltaram de R$ 55,6 bilhões em 2000 para R$ 151,6 bilhões em dezembro do ano passado.

Torneiras abertas A livre gastança do governo federal vem ocorrendo porque os estados e os municípios, obrigados pela Lei de Responsabilidade Fiscal, conseguiram reduzir suas dívidas e aumentar o superavit primário, resultado obtido quando o governo arrecada mais do que gasta sem considerar o pagamento de juros da dívida. Isso deu espaço para que os gestores fiscais da União abrissem as torneiras do Tesouro Nacional. Para o economista José Roberto Afonso, consultor do Senado que participou da elaboração da LRF, isso explica a falta de regulamentação da lei. ¿A União não estar sujeita a qualquer limite de dívida não tem lógica econômica ou isonomia federativa¿, assinalou.

Outros economistas discordam da visão do ex-presidente do BC. Yoshiaki Nakano, professor da Fundação Getulio Vargas e ex-secretário de Fazenda do estado de São Paulo, não vê problemas a curto e médio prazos. ¿Nós estamos relativamente bem. Mesmo quando adotamos uma política expansionista dos gastos por causa da crise no ano passado, continuamos com um deficit nominal em torno de 3%, um dos mais baixos entre os países emergente¿, explicou. Essa medida inclui os juros da dívida pública.

Para Nakano, o momento agora é de olhar para a longo prazo. Ele defende a aprovação pelo Congresso de uma lei que ponha freio nos gastos da União, medida que considera crucial para assegurar o crescimento econômico em torno de 7% sem inflação nem aumento de juros. Para isso, seria preciso limitar o crescimento dos gastos correntes nos próximos anos. ¿Precisamos dar o passo seguinte e definir nova lei que permita esse processo e gere mais transparência com os gastos¿, assinalou Nakano.

O número Funcionalismo 151,6 bilhões despesas da União com pessoal em 2009

Sem problema a curto prazo

Na visão dos analistas, o problema fiscal brasileiro a curto prazo está resolvido, o que afasta qualquer possibilidade de o país atravessar uma crise semelhante à da Grécia. ¿Estamos com a dívida sob controle, a solvência do país é inquestionável¿, afirmou o professor Carlos Thadeu de Freitas, ex-diretor da Dívida Pública do Banco Central (BC), que defende o crescimento dos gastos públicos promovidos no ano passado para enfrentar a crise internacional. ¿A necessidade de geração de superavit primário é uma realidade. Enquanto tivermos saldo primário, a dívida não será o problema.¿

No entanto, Freitas vê problemas na metodologia das contas. Ele lembra que o orçamento(1) brasileiro tem os chamados ¿restos a pagar¿, uma contabilidade paralela na qual o governo empenha gastos em um ano e deixa para pagar depois. ¿Ela não consta como dívida oficial e, é claro, o saldo primário das contas (resultados de gastos e arrecadações, sem considerar o pagamento de juros da dívida) deveria ser maior para fazer frente a isso¿, afirmou.

Os especialistas concordam que futuros avanços na responsabilidade fiscal vão ter que passar por melhoria no processo orçamentário, no qual se geram os impostos que permitem os gastos do governo. ¿É preciso que a sociedade decida sobre impostos e gastos em conjunto e, transparentemente, delibere sobre dívida pública. Isso nós não temos ainda¿, assinala Gustavo Franco, ex-presidente do BC, para quem a decisão de se manter o superavit primário continua discricionária, sem relação com a lei ou com o orçamento.

José Roberto Afonso, consultor do Senado, defende mudanças na maneira como o orçamento público é elaborado pelos parlamentares, tema que está em discussão no Congresso. Ele chama a atenção ainda para a necessidade de os governos investirem em melhoria da gestão, tanto para modernizar a cobrança de impostos como para dar mais eficiência aos gastos públicos. ¿É preciso fazer mais com o mesmo ou até com menos recursos¿, destacou. (MG)

1 - Limite Além de ter limites para seu endividamento, o orçamento da União é autorizativo. Isso significa que o governo federal não está obrigado a cumpri-lo integralmente. Para economistas como Gustavo Franco, ex-presidente do Banco Central, isso torna a peça orçamentária irrealista. Na Austrália e na Nova Zelândia, entre outros países, tanto o orçamento geral como os dos órgãos públicos são submetidos a auditorias independentes para verificar se as metas fiscais foram alcançadas a um custo razoável. (MG)