Título: Governo não prioriza campo, diz Pratini
Autor: Alda do Amaral Rocha, Conrado Loiola e Fernando Lo
Fonte: Valor Econômico, 05/12/2005, Especial, p. A12

Cenários Ex-ministro da Agricultura critica postura de Brasília na crise da aftosa e dispara contra o câmbio

Pratini de Moraes, ministro da Agricultura entre 1999 e 2002, no governo tucano de Fernando Henrique Cardoso, conhece seu sucessor há décadas. Considera-se amigo de Roberto Rodrigues, e na fazenda do atual ministro em Guaíra (SP) já plantou com ele três árvores para simbolizar o apreço mútuo. Nesse contexto, o experiente Pratini - que em 1968, durante o regime militar, assumiu um ministério (Planejamento e Coordenação Geral) pela primeira vez, aos 27 anos - não só não critica Rodrigues como se solidariza com ele. Mas não poupa o governo federal, que em sua opinião "não dá prioridade" ao agronegócio, setor responsável por cerca de 30% do PIB do país. "Não quero parecer o dono da verdade, mas o agronegócio não tem nesse governo o apoio que teve no passado", diz Pratini, referindo-se à escassez de recursos para defesa sanitária que contribuiu para o ressurgimento da febre aftosa no país este ano. "A aftosa é fundamentalmente uma questão de apoio à vigilância sanitária, que é uma atividade que tem de ser desenvolvida com absoluta prioridade", defende. Para o ex-ministro, que hoje preside a Associação Brasileira da Indústria Exportadora de Carne (Abiec), a aftosa arranhou a credibilidade do Brasil no exterior, mas os prejuízos com as vendas externas não devem ser expressivos. Ele lembra que em novembro, por exemplo, o país exportou cerca de US$ 230 milhões, apenas um pouco abaixo da média mensal de US$ 270 milhões. Ministro da Indústria e do Comércio entre 1970 e 1974 e de Minas e Energia em 1992, com passagem pelo Congresso e por diversas entidades ligadas ao comércio exterior, além de pertencer a conselhos de administração de empresas e bancos privados, Pratini de Moraes também destila críticas à política cambial do governo Lula - "em país pobre, câmbio tem que ser caro para que a competitividade seja mantida" - e às negociações comerciais com os Estados Unidos para a formação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Bem disposto depois de quase 40 anos de vida pública, o gaúcho Pratini de Moraes, hoje filiado ao PFL após anos no PP, garante que não é candidato a qualquer cargo eletivo e que prefere se dedicar a trabalhos como o atual. Dono de 200 hectares no Rio Grande do Sul, onde planta árvores e cria uma única vaca, o ex-ministro, concedeu a seguinte entrevista ao Valor na véspera do anúncio do resultado do PIB do país no terceiro trimestre do ano - golpeado, entre outros fatores, pelo fraco desempenho do agronegócio. Valor: Uma das principais queixas do setor dos agronegócios em relação à política macroeconômica do governo Lula é o câmbio. A reclamação é pertinente? Pratini: Em país pobre, o câmbio tem que ser caro. Qual o segredo da Rússia, da China? E o câmbio do Brasil não é livre, existe monopólio. O Brasil é um dos poucos países do mundo onde se pratica monopólio de câmbio. Se você mantiver uma conta em dólar aqui no Brasil é cadeia. Com a obrigatoriedade de tudo passar pelo BC [Banco Central], você viabiliza condições de arbitragem de taxa de juros extremamente favoráveis. Essa é uma das razões pelas quais os bancos ganham muito dinheiro no Brasil. Eles fazem o que se chama de arbitragem da moeda, e não há nenhum crime nisso. [Os bancos] estão simplesmente fazendo aquilo que as condições de mercado lhe oferecem. Eles têm que defender o dinheiro do depositante. Valor: Então, qual é o problema dessa taxa sobrevalorizada? Pratini: Você associou a possibilidade de fazer arbitragem de taxa de juros a uma situação extremamente favorável do ponto de vista da balança comercial. Mesmo com a situação dos calçados, da soja que não está bem, do algodão que está quebrado, como que tem esse saldo, esse superávit? Porque você tem dois acontecimentos que não foram suficientemente avaliados no Brasil. O primeiro é que nós somos auto-suficientes em petróleo. Neste ano, me parece que já teremos um saldo positivo na conta de petróleo. E, além disso, no minério de ferro nós somos os maiores exportadores do mundo, e o preço em dólar dobrou. Valor: E os manufaturados? Pratini: Em todos os manufaturados onde você tem a possibilidade de fazer drawback, há muito mais capacidade de resistir à baixa taxa de câmbio do que naqueles que têm custo de mão-de-obra elevado. Por exemplo, onde você perde espaço? Sapatos, couro. Você compete com os chineses, que têm mão de obra bem mais barata. No setor automobilístico, até certo ponto. Autopeças sim. Mas na indústria automobilística você tem a defesa do drawback. Então, até agora você tem manutenção e até aumento em algumas marcas porque o drawback aumentou. Valor: Porque o atual patamar do dólar deixa mais barato os produtos que vem em drawback... Pratini: Um país exportador de mão-de-obra, quando a taxa valoriza, passa muito mal. Um país importador de matéria-prima e mão-de-obra, leia-se Japão, Alemanha e a maioria dos países europeus, se dão muito bem quando a moeda valoriza. O Japão não quebra, mas o iene não chegou a 100? Claro que não, ele importa petróleo, tudo isso passa a custar mais barato pra ele. Se eu importo minério de ferro e minha moeda se valorizou em 20%, meu minério de ferro caiu 20%. Então eu posso, com esse minério de ferro mais barato, manter a competitividade na exportação com melhoramentos tecnológicos. Agora quando eu sou fabricante de sapatos e móveis ou de produtos da Zona Franca de Manaus, estou quebrado. E o que é mais atingido? As pequenas e médias indústrias. Porque a indústria maior consegue se capitalizar um pouco e consegue financiar a produção da exportação. A indústria pequena vive do ACC [Adiantamento de Contrato de Câmbio]. Valor: No agronegócio, alguns segmentos foram bem em 2005. É o caso das carnes, apesar dos problemas sanitários. Qual o segredo? Pratini: Não tem alternativa, o Brasil é a última fronteira agrícola do mundo. Nós temos uma competitividade muito grande. Valor: E as perspectivas para 2006 nessa área? O Brasil terá superávit mesmo se o real se mantiver apreciado em relação ao dólar? Pratini: O superávit vai diminuir, evidentemente. O superávit também é grande porque a economia brasileira não cresce. Se crescesse, haveria grande aumento da importação. Em 2006, se a economia não crescer, a importação não crescerá muito. Valor: E quais as consequências? Pratini: O Brasil ainda não se deu conta que o agronegócio é 30% do PIB e que o setor não é só carne e soja, mas também maquinário, adubo e um volume enorme de transportes e serviços. Hoje o agronegócio é uma máquina de serviços terceirizados. Nos últimos anos, o país cresceu por causa dos agronegócios. Enquanto a agricultura cresce, o produto cresce, mesmo que a indústria não cresça. Se a agricultura não cresce, o efeito sobre a área industrial é muito grande. É o que está acontecendo hoje. Valor: O atual governo trata o setor de agronegócios como deveria?

Em país pobre, o câmbio tem que ser caro. É o segredo de Rússia e China. E o câmbio no Brasil não é livre, há monopólio"

Pratini: Eu não quero parecer o dono da verdade, mas o agronegócio não tem nesse governo o apoio que teve no passado. A [febre] aftosa, por exemplo, é fundamentalmente uma questão de apoio à vigilância sanitária. Que é uma atividade que se não for desenvolvida com absoluta prioridade, tem como conseqüência o surgimento de problemas como o que aconteceu no Mato Grosso do Sul. Foi um descuido em uma região vulnerável. Valor: Mas há limitações. Normalmente o governo não pode repassar recursos para Estados inadimplentes. Nessas circunstâncias, não só esse governo, mas todos os outros, vão ficar de mãos atadas. Pratini: Não há governo sem solução, o que há é uma grande preocupação de contar desculpas para a falta de ação. Se o assunto for prioritário, tem solução. Valor: E os limites impostos pela Lei de Responsabilidade Fiscal? Pratini: A Lei de Responsabilidade Fiscal, além de reforçar restrições que já existiam, aumentou as restrições com relação aos percentuais de gastos que os Estados e municípios podem ter em áreas como educação e saúde. Mas essa história de não ter verba só justifica uma parte do problema. E o problema dos recursos oficiais se concentra nos Estados mais pobres e na Amazônia. Valor: Os pecuaristas também têm responsabilidades na crise da aftosa? Em geral eles têm consciência de que é preciso vacinar o gado? Pratini: Depende do pecuarista. Valor: O setor já calculou o estrago que esta crise fará nas exportações brasileiras de carne bovina? Pratini: Já teve estrago. Na década de 1990, construímos uma imagem de seriedade no tratamento das questões sanitárias no país. Adquirimos credibilidade. O grande estrago do Brasil foi a perda de credibilidade que aconteceu nesse episódio. Perdemos e agora temos que reconquistar. Em valores, a perda foi mínima. A nossa sorte é que todo mundo precisa da nossa carne. Valor: Tecnicamente o país está bem estruturado nessa área? Pratini: O Brasil tem um estoque de técnicos com respeitabilidade e reconhecimento internacional. O que o Brasil fez em matéria de genética animal e vegetal, o que nós fizemos em algodão, em soja, o que nós fizemos em melhoramento genético em todas as raças.... Nós só temos que preservar isso e respeitar essa gente. Temos um estoque de especialistas que já mostrou, no passado, que é capaz de enfrentar problemas como a aftosa. Valor: Houve focos de aftosa em Jóia e Livramento, no Rio Grande do Sul, durante sua passagem pelo Ministério da Agricultura. Quais foram as consequências na época? Pratini: Na época, o governo gaúcho [então administrado pelo PT] não queria abater animais. 'Vai abater os animais e enterrar, com tanta gente passando fome?'. Só que mais gente passaria fome se nós não tivéssemos feito o que tinha de ser feito. Resultado: o mundo inteiro reconheceu a seriedade da administração sanitária do país. Está aí o resultado: o país é o maior exportador do mundo. Valor: A discussão sobre os transgênicos também esquentou na sua gestão à frente do Ministério da Agricultura. Qual sua posição pessoal em relação a esta tecnologia? Pratini: Na minha época [no ministério], fui proibido de me manifestar. Sabe o quê eu fazia? Eu ia no Rio Grande do Sul e falava: 'Planta! Planta que o seu vizinho na Argentina vai plantar e ele vai ter custo menor que o teu, mas o preço vai ser o mesmo". Valor: Falta nesse governo empenho em relação à defesa sanitária? Pratini: Como já fui ministro seis vezes, não gosto de avaliar, nem de ser avaliado, por sucessores ou antecessores. Eu conheço o Roberto [Rodrigues] há longos anos, fui amigo do pai dele. Eu tenho árvore plantada na casa do Roberto lá em Guaíba, três árvores enormes. Eu acho simplesmente que o governo [atual] não dá a esse setor prioridade. Valor: Mas não é um problema que extrapola o atual governo? Pratini: Cada governo tem suas prioridades, e essa não é uma prioridade [do atual governo], a impressão que eu tenho é essa. Valor: Mas a vacina contra aftosa quem paga é o produtor... Pratini: O maior investimento é sempre do produtor. Na minha gestão, demos vacina para a Bolívia. Quando apareceu febre aftosa no Uruguai, nós mandamos um avião da Força Aérea com um milhão de doses para lá.

Não tenho queixas do Itamaraty. Mas o governo não pode misturar política e ideologia com comércio"

Valor: O Sr. permaneceu muito tempo no Partido Progressista (PP) e atualmente está filiado ao Partido da Frente Liberal (PFL). Porque decidiu mudar de partido? Pratini: Saí do PP já há muitos anos. O PP no Rio Grande do Sul é um partido que tem uma certa tradição, mas no resto do país ele assumiu uma outra conotação. Começou inclusive a entrar em conflito com o PP gaúcho. Valor: O Sr. pensa em se candidatar nas eleições de 2006? Pratini: Não, estou muito bem onde estou. Cheguei à conclusão de que posso fazer até um certo serviço público trabalhando em entidades como a Abiec. Não sou dono de nenhuma propriedade agrícola importante. Tudo que eu tenho [no campo] são 200 hectares onde planto árvores. Eucalipto, Acácias e Pinus. Fiz uma tentativa com Teca, mas o clima não ajudou. É uma madeira muito boa para móveis. E tenho uma vaca só. Assim, nessas questões consigo colocar uma dose de serviço público. Me sinto feliz. Não ganho comissão para vender carne, não faço disso um negócio. Valor: E aceitaria convite para assumir um ministério pela 7 vez? Pratini: Sete é conta de mentiroso [risos]... Valor: O Itamaraty mantém uma linha correta nas negociações com União Européia e Estados Unidos? Pratini: Minha experiência com o Itamaraty é muito boa. Eu não tenho queixas do Itamaraty. É claro, há embaixadores mais atuantes, existem embaixadores que não querem nada. Eu, por acaso, tenho sempre lidado com embaixadores da maior competência e que têm nos ajudado. Tanto quando eu estava no governo, no Ministério da Agricultura, como agora que estou na Abiec. Não tenho queixa. Valor: Os resultados da atuação do Itamaraty são positivos? Pratini: O problema é que as pessoas fazem a imagem do Itamaraty como se fosse um posto de vendas. Não é. Quando um empresário vai para o exterior, ele vai com uma tarefa. Ele pede ajuda ao Itamaraty para facilitar sua tarefa. Eu estive recentemente em Moscou, tentando evitar que a Rússia fechasse o país inteiro [às carnes brasileiras, por causa da crise da crise da febre aftosa] e realmente conseguimos que fosse [fechado] só o Mato Grosso do Sul. Em alguns casos foram nossos contatos diretos, em outros casos a embaixada ajudou, o Itamaraty ajudou. Nós temos um problema na OMC, eu vou lá e converso, não tenho queixa não. Valor: E o Itamaraty nas negociações da Rodada Doha da Organização Mundial do Comércio? Pratini: Acho que a postura do Itamaraty pegou, acho que a idéia do G-20, que foi um pouco criticada, foi boa. A única coisa que eu condeno, e aí não é no Itamaraty, é que algumas posições políticas do governo misturam política e ideologia com comércio. Aí fica um pouco complicado. Quando faço uma negociação porque estou apoiando a postura do [presidente venezuelano Hugo] Chávez ou do [ditador cubano] Fidel [Castro], complica. Valor: E no caso da Área de Livre Comércio das Américas? Pratini: Algumas pessoas não gostam da posição do Brasil em relação à Alca e eu acho que nós tínhamos que ser mais agressivos. Mas eu vejo que do lado de lá também não há muito interesse. Acho que o desinteresse é comum. Acredito que a Alca é uma coisa que vai ter que acontecer, porque é natural que se faça um acordo com os americanos. Os americanos são os maiores parceiros comerciais [do país] e, sobretudo, são os maiores importadores de bens industriais do Brasil. Nós não podemos basear tudo na agricultura. Valor: Eles têm um serviço diplomático que é altamente agressivo... Pratini: Ah, sim, mas aí não é serviço diplomático americano, aí é o Departamento de Comércio. Eles tiraram do Itamaraty deles o serviço de negociação comercial. Coisa que se tem tentado fazer no Brasil, sem êxito. Valor: E como o Brasil pode se defender dessa postura mais agressiva dos Estados Unidos? Pratini: Para poder falar com firmeza com esses caras, tem que fazer o dever de casa. Eles sabem. Eu leio esses papéis em casa [mostra uma pasta com documentos e estatísticas], analiso, peço estudos específicos. 'Escuta, vamos analisar isso, vamos analisar aquilo', peço para minha assessora dar uma lida... Você tem que fazer o dever de casa, você não pode chegar e improvisar. Quando eu faço um discurso como eu fiz, refutando o Pascal Lamy [diretor-geral da OMC], na semana passada, significa que eu trabalhei as idéias todas e depois lancei com certa veemência. Mas eu estudei. Não vou criticar o Pascal Lamy, que é um homem inteligente, preparado, cartesiano, francês, sem ter estudado. Então, eu diria o seguinte: os americanos optaram pela solução, como a maioria dos outros países, de se separar do Itamaraty. Valor: O Brasil tem uma política externa eficiente? Pratini: O problema é que o Brasil não tem política externa. Quem tem política externa tem muita grana ou muita bala, ou os dois. Aí é imbatível. É o caso dos nossos amigos do norte. Então, resta ao Itamaraty e à diplomacia brasileira, que é formada por homens preparados, poucas tarefas no campo diplomático, efetivamente. A não ser em alguns postos onde se exerce a diplomacia: Argentina, Estados Unidos, Alemanha, Paris. Há poucos postos realmente importantes para o país. Então esses homens, os mais competentes, geralmente se preparam para a área comercial e aí você pega a cereja. Eles estão fazendo essa tarefa. Mas eles resistem muito à idéia de você transferir isso para o Ministério do Desenvolvimento, e até põem um diplomata no Ministério do Desenvolvimento [caso de Sérgio Amaral, ministro no governo de Fernando Henrique Cardoso].