Título: Supremo se prepara para mais uma decisão polêmica
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Fonte: Valor Econômico, 20/01/2006, Opinião, p. A10

Uma decisão que será anunciada até março pelo Supremo Tribunal Federal (STF) resultará no cancelamento de mais de 10 mil ações e inquéritos instaurados contra gestores públicos por improbidade administrativa. O STF finalizará o julgamento de uma reclamação do governo Fernando Henrique Cardoso, em recurso contra decisão da 14ª Vara da Justiça Federal, que condenou em 1992 o então ministro Ronaldo Sardenberg à suspensão dos direitos políticos por oito anos e ressarcimento das despesas e multa de R$ 20 mil, em valores da época, pelo uso de jatinhos da Força Aérea Brasileira (FAB) em viagens de turismo. A decisão já teve a maioria dos votos da Corte e só não foi proclamada ainda porque um dos ministros pediu vistas. Ao acatar a reclamação, o STF abriga o entendimento de que o agente político não pode ser processado pela lei de improbidade administrativa, mas apenas por crime de responsabilidade, o que garantiria a ele foro especial. Assumindo essa interpretação, os ministros do STF invalidam também milhares de processos contra prefeitos, governadores e ministros que hoje se espalham pelas Varas de Justiça do país - entre elas, alguns contra os ex-prefeitos de São Paulo Paulo Maluf e Celso Pitta. A jurisprudência será, no mínimo, objeto de uma grande polêmica. Na prática, ela exclui dos rigores da lei de improbidade administrativa todos os "agentes políticos" - executivos eleitos, ministros e parlamentares - e passa a atingir apenas funcionários públicos. A lei é de 1992 e é considerada um marco na legislação contra a improbidade. Até então, as ações contra executivos municipais, estaduais e federal eleitos limitavam-se à esfera política: o impeachment, que é por princípio um julgamento político. O argumento favorável à decisão, que excluirá os agentes políticos dos rigores da lei de 1992 e deslocará o julgamento de seus atos administrativos para a que define os crimes de responsabilidade, é o de que a lei de improbidade acabou se tornando uma arma nas mãos dos adversários políticos de administradores legitimamente eleitos. Dada a facilidade de se abrir um processo contra o gestor público em qualquer Vara de Justiça, as ações proliferam em instâncias inferiores, tornando difícil a defesa do prefeito ou governador. Além disso, a lei não favorece a individualização do ato - isto é, um prefeito pode ser chamado a responder criminalmente por um achaque de um fiscal de feira. Embora administradores, em regra, sejam inocentados de uma presumida co-responsabilidade por qualquer ato de um funcionário público, em véspera de eleição esses processos são usados eleitoralmente contra eles. O argumento final é o de que a lei que define os crimes de responsabilidade tem penas duras, inclusive a de perda de mandato e inelegibilidade. A única diferença seria a de que as ações estariam concentradas: no caso de deputados estaduais, prefeitos e vereadores nos Tribunais de Justiça; de governadores, no Superior Tribunal de Justiça; e quando dirigidos a presidente da República, ministros, senadores e deputados federais no STF. O fato de o STF ter se apressado para tirar um assunto que há anos espera uma decisão da gaveta é um reconhecimento do tribunal de que se faz uso político da lei de improbidade: a intenção é varrer os processos nessa situação antes do início do processo eleitoral. A medida também é vista como uma forma de coibir o uso político da lei de improbidade pelo Ministério Público, pois esse é o instrumento jurídico mais usado contra administradores públicos. O potencial de polêmica da medida, apesar de todos os argumentos favoráveis a ela, sugere, no entanto, que o STF examine o assunto com cautela. Se a sua intenção for a de despolitizar as ações de improbidade administrativa, está partindo do princípio de que o Ministério Público, e até juízes de primeira instância, não são refratários a influências, enquanto os tribunais superiores pairam acima de quaisquer interesses - e por essa razão teriam direito ao monopólio dos julgamentos por improbidade. Se reconhecer, no entanto, que nem ele próprio ficou isento da politização, nesse momento de grande radicalização política, talvez a discussão se desloque para formas de impermeabilizar instituições não-políticas e aprimorar a democracia jovem desse país, sem com isso suprimir instrumentos de controle social sobre os chamados agentes políticos.