Título: Um partido onde apenas três decidem
Autor: Maria Inês Nassif
Fonte: Valor Econômico, 02/02/2006, Política, p. A14
O PSDB está longe de ser um partido de massas e nunca enganou ninguém quanto a isso. A legenda tucana está onde sempre esteve: foi constituída como uma cisão do PMDB, na Constituinte de 1988, por cardeais da política nacional com mandato legislativo. Desde a origem, é um partido congressual; desde o início, seus "consensos" são forjados por cima: o cardinalato decide, as "bases" aceitam. Por baixo, as "bases" locais decidem a sua vida e o cardinalato não se intromete. Essa dinâmica interna é, por definição, refratária a grandes consultas. Uma prévia para a escolha de candidatos é impensável numa legenda como o PSDB. Uma disputa numa convenção nacional, o sinal de uma divisão incontornável. Elites dirigentes com poder sobre toda a máquina não são novidade no quadro partidário brasileiro. No velho MDB, Ulysses Guimarães e Tancredo Neves articulavam nos bastidores antes de uma convenção nacional, ou mesmo de uma simples reunião de Executiva. A máxima era a de que a reunião que valia era a que acontecia antes. Ainda assim, o MDB, depois PMDB, comportava dissidências públicas. O PMDB, sucedâneo do MDB, não conseguiu manter esse cordial elitismo após a morte de ambos. O PSDB, no entanto, nascido da costela do partido de Ulysses, levou ao extremo a máxima de que cacique manda, índio obedece. Trouxe à luz do dia e legitimou uma situação onde a cúpula detém o monopólio da decisão política a nível nacional, sem contestações dos "de baixo". De tal forma que é visto como absolutamente natural o fato de três únicos tucanos - o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o presidente tucano Tasso Jereissati e o governador de Minas, Aécio Neves - terem o poder de definir os "critérios" para a escolha do candidato do partido à Presidência. E, mais do que isso, o dom divino de apontar um "consenso" sem consultar formalmente o partido. De forma subsidiária atua a Executiva: a ela cabe encomendar pesquisas que darão "objetividade" e "racionalidade" à decisão da trinca governativa tucana. Celso Roma, em artigo publicado na Revista Brasileira de Ciências Sociais de fevereiro de 2002 ("A institucionalização do PSDB: entre 1988 e 1999"), sustenta que o pragmatismo eleitoral explica a criação do PSDB, que cresceu devido a uma estrutura organizacional e à visão ideológica de suas lideranças. A falta de "instâncias internas de veto" confere a uma cúpula dirigente o monopólio das decisões sobre política nacional, inclusive a definição ideológica. O partido ajeita interesses contrapondo à autonomia nacional dos cardeais uma autonomia correspondente nas instâncias locais. Nas entrelinhas da análise de Roma, lê-se o PSDB como um partido de quadros, elitista internamente e ideologicamente mais afinado ao liberalismo do que à social-democracia.
Discurso interno é elitista e conservador
As conclusões de Roma ganham mais cor quando se toma a prática política do PSDB após a ascensão petista ao poder, período posterior ao estudado. A característica de partido de quadros, num primeiro momento, conferiu à atuação tucana uma certa ambigüidade: as instância estaduais, representadas pelos governadores , fecharam com Lula em torno das reformas, em especial a da Previdência. Num segundo, a cúpula nacional retomou o seu poder de decisão. O fato de ser um partido sem militância acabou jogando toda a estratégia oposicionista para o terreno parlamentar, e sua característica de legenda de caciques coroou FHC seu principal protagonista: é o ideólogo, o porta-voz, aquele que coordena "consensos". No período forçado nas hostes oposicionistas, o PSDB desfraldou um discurso que trai seu lado conservador. Das discussões sobre a estratégia a ser adotada após a derrota de 2002, sobressai uma cartilha do Instituto Sérgio Motta, de abril de 2003 (http://www.psdb.org.br/doc/destaques/Em%20Frente!.pdf) - uma edição do periódico "Em Frente". Após a constatação de que o PSDB é um partido apenas de quadros, que ganhou duas eleições nas costas do Plano Real - "o plano era o 'povo' que nos faltava" -, recomenda aproximação com os sindicatos. Os tucanos devem marcar reuniões com as centrais sindicais para saber suas opiniões. "Sim, [o tucano] terá que ouvir muita conversa, muita defesa de privilégios, mas e daí?". O conservadorismo ideológico é traído numa quase obsessão pela denúncia de "sovietização" do governo Lula. O próprio FHC, cardeal-mor, percorre o discurso anticomunista. Em entrevista ao O Estado de S. Paulo (29/08/2006), acusou o PT de ser "um partido autoritário, de tendência absolutista e levemente bolchevique". O prefeito José Serra disse que o PT instituiu, no poder, o "neopatrimonialismo sindicalista-bolchevique", seja lá o que isso for (FSP, 31/07/2005). Em artigo ("As condições para o PSDB assumir o desafio de ser oposição") publicado na Revista Social Democracia Brasileira, do PSDB, de março/abril de 2003, o jornalista Reinaldo Azevedo assim expressa seus temores: "Escapa ao observador menos atento que o PT está, cotidianamente, criando condições e um caldo de cultura para dar, se necessário, um verdadeiro 'by pass' na democracia representativa". Os comitês gestores do Fome Zero são idéia fixa, tanto de Azevedo como do documento da Fundação: eles seriam sovietes, montados para expandir a área de influência do PT. Azevedo sentencia: "Para o PT, passada a crise financeira, a fórmula exótica compreende, de um lado, massas mais ou menos sovietizadas sob rígido controle do Estado e do partido e, de outro, a aliança tácita com os 'empresários de interesse nacional'". A imprensa, segundo a cartilha, é petista, e, junto com o Ministério Público e o PT, formam uma trinca. Após a chegada do PT ao poder, a "rede" serviria para proteger "os desmandos que serão feitos 'em nome do povo'". A fórmula para neutralizar o esquema seria a de cooptar jornalistas. "Assim como jornalistas têm fontes no poder público e na política, os políticos precisam 'cavar' os seus 'repórteres'. Por mais que o jornalismo seja majoritariamente petista, a competição na base tem um caráter algo predatório. Querem notícia", diz a edição do "Em frente!".