Título: Uma Justiça cada vez mais abarrotada de processos
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 20/02/2006, Opinião, p. A8

Imagine-se um país onde, a cada ano, um em cada dez habitantes, em média, recorre à Justiça para reclamar o reconhecimento de um direito. Esse país é o Brasil. Segundo dados divulgados na última quinta-feira pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2004 apenas a Justiça nos Estados recebeu 14 milhões de novas ações. Na Justiça Federal e Trabalhista, mais 6,6 milhões de novos processos abarrotaram os escaninhos dos juízes. Tantas ações não são, infelizmente, resultado de um sistema em que todos os cidadãos têm acesso amplo e fácil ao Poder Judiciário. Na verdade, a alta litigiosidade reflete o fato de poucas pessoas ou instituições recorrerem à Justiça, enquanto que a maior parte da população está afastada dos mecanismos formais de resolução de disputas. Os Estados mais ricos, com IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) maior, litigam mais. São Paulo, o mais desenvolvido do país, tem 6,62 habitantes para cada processo judicial distribuído anualmente. Alagoas, um dos mais pobres, tem 62,38. A média nacional é 10,2 habitantes por ação judicial. Não há Justiça aparelhada para julgar com celeridade tantas ações judiciais. Segundo o Supremo Tribunal Federal, o grau de congestionamento nos tribunais brasileiros, ou seja, a proporção entre os novos processos e as ações julgadas em um ano, foi de quase 60% em 2003. Isto significa que, de cada 100 novas ações judiciais movidas naquele ano, 60 foram para a fila. Dados do CNJ mostram que a situação é mais grave na primeira instância da Justiça Comum (estadual), onde se julgam ações entre entes privados - por exemplo: uma ação de cobrança bancária. Lá, o índice de congestionamento chegou a 80% em 2004. Nos juizados especiais, que julgam pequenas causas (de valores até 40 salários mínimos), cada juiz teve, naquele ano, 3,9 mil processos para julgar. Já os juízes de primeira instância receberam 3 mil ações. O congestionamento provoca, evidentemente, aumento no prazo de duração dos processos. Na primeira instância, as ações judiciais levam de 10 a 20 meses para tramitar. Na segunda, de 20 a 40 meses, mesmo prazo das instâncias especiais. Um Poder Judiciário moroso provoca efeitos danosos para a economia nacional. Implica diminuição de investimentos, restrição ao crédito e aumento de seus custos. Estudo feito pelo Banco Central (BC) estima que 20% da composição do "spread" bancário cobrado no país diz respeito à taxa de inadimplência e, portanto, à dificuldade dos credores de recuperar judicialmente créditos devidos. O mesmo levantamento mostra que, quanto menor o crédito, mais difícil é recuperá-lo. Se um débito de R$ 500 vai à execução judicial, processo que leva até cinco anos para ser concretizado, o credor nada recupera. Se a dívida é de R$ 50 mil, o credor consegue de volta, em média, apenas R$ 12.054 (24,1% do total) e, mesmo assim, depois de passar pelos processos de cobrança extrajudicial simples, fase de conhecimento e de execução judicial. Uma verdadeira via-crúcis. Há uma relação direta entre a eficiência do sistema de recuperação de crédito e as taxas de juros do mercado. Pequenos empresários dificilmente dispõem de recursos e condições para recuperar créditos devidos. Grandes empresas são obrigadas a montar estruturas jurídicas permanentes e caras. Bancos têm enorme dificuldade em executar garantias. Em média, levam 37 meses para cobrar uma fiança. O resultado, para toda a sociedade, são os juros altos e o desestímulo ao investimento privado. Em dezembro de 2004, o Congresso Nacional aprovou a Proposta de Emenda Constitucional 45, mais conhecida como "reforma do Judiciário". No ano passado, dando seqüência às mudanças feitas na Constituição, o governo encaminhou ao Legislativo um conjunto de 26 projetos de lei. Trata-se de uma ampla reforma do processo civil, penal e trabalhista. A crise política, que praticamente paralisou Congresso e governo durante oito meses, obscureceu a importância desses projetos, que, se aprovados, ajudarão a transformar a Justiça brasileira. Cinco dos 26 projetos já passaram na Câmara e no Senado, mas o mais importante deles para a economia - o que agiliza as execuções judiciais - está parado desde maio. É hora de o governo e oposição mobilizarem novamente suas lideranças para fazer avançar uma reforma tão cara à modernização do país.