Título: Coexistência ou não existência
Autor: Uffe Ellemann-Jensen
Fonte: Valor Econômico, 20/02/2006, Opinião, p. A8

No mundo moderno é preciso que todos trabalhem por respeito, tolerância e compreensão

Agora que o conflito em conseqüência das charges representando o profeta Muhammad está declinando, ou assim espero, está claro que os únicos vencedores são os extremistas - no mundo islâmico e na Europa. Deploro o fato de que a controvérsia tenha começado em meu próprio país, quando um jornal decidiu publicar as charges, numa tentativa ingênua de demonstrar sua liberdade de expressão. Isso aconteceu no final do ano passado, e naquele momento argumentei publicamente contra o que considerei um gesto insensível, por ferir os sentimentos religiosos de outras pessoas. As charges foram também uma provocação desnecessária e constituíram, em si mesmas, uma caricatura de nossa prezada liberdade de expressão que é assegurada em nossa Constituição. Como meu pai (um velho jornalista) costumava dizer: "A liberdade de expressão assegura o direito de dizer o que pensamos, mas não obriga ninguém a fazê-lo!" Quando a controvérsia explodiu, algumas semanas atrás, muita lenha foi jogada na fogueira. Muitas notícias incorretas circularam. Falsos rumores segundo os quais o Alcorão tinha sido queimado em manifestações de protesto, informações falsas sobre a condição do Islã na Dinamarca, traduções incorretas do que nossa rainha havia dito etc. Isso inflamou ainda mais o ódio e resultou nos incêndios em embaixadas e em ameaças de violência. O conflito foi rotulado "choque de civilizações". É possível que deteriore a ponto de converter-se nisso; a possibilidade existe. Mas eu preferiria, ainda, denominá-lo "choque dos mal-informados". Houve muitos erros de ambas as partes: de um lado, houve incompreensão sobre os profundos sentimentos religiosos feridos por uma exibição de desrespeito. De outro lado, as pessoas receberam relatos exagerados, e até mesmo falsificados, do que havia efetivamente ocorrido. As possibilidades de um "choque de civilizações" estão nas profundas diferenças entre as culturas e tradições européia e islâmica. Todos deveríamos estar alertas contra aqueles empenhados em aprofundar essas diferenças e transformá-las em fossos intransponíveis, em vez de aproveitá-las como inspiração para uma vida mais rica. É facílimo, para eles, apontar o caso das charges e dizer: agora, você pode ver como a democracia e a liberdade de expressão ocidentais implicam em que você seja submetido à ridicularização e troça de sua fé religiosa! É fácil porque a liberdade de expressão foi usada, no caso da publicação das charges, meramente para demonstrar a própria liberdade de expressão - e portanto tornou-se uma caricatura de si mesma.

Infelizmente, são as pessoas que desejam o confronto de valores as beneficiárias do conflito deflagrado pelas charges no jornal dinamarquês

Nosso mundo globalizado não nos proporciona apenas oportunidades econômicas, mas também desafios culturais e espirituais. A internet e "torpedos SMS" desenvolveram-se em menos de uma década, e ainda não fizemos os ajustes mentais às implicações desses meios de comunicação instantânea. Os cartunistas e editores de jornais dinamarqueses que publicaram as charges evidentemente pecaram por não compreender que não estavam se dirigindo apenas a um público local, mas também a outros habitantes da aldeia mundial. Se eles tivessem se dado conta disso, não teriam publicado as charges - como declararam claramente quando apresentaram sua desculpas. As lições desse lamentável incidente a mim parecem claras: devemos, todos, reconhecer que no mundo moderno é cada vez mais necessário que as pessoas sensatas trabalhem por respeito mútuo, tolerância e melhor compreensão. Precisamos evitar situações onde valores distintos sejam mutuamente confrontados de maneiras que desencadeiem violência. Em vez disso, devemos tentar construir pontes entre religiões, éticas e normas. Diga o leitor que é auto-censura, se quiser. Mas auto-censura é praticada o tempo todo por pessoas sensatas. Se você quer permanecer numa mesma sala com outras pessoas, esforce-se para não ofendê-las com provocações desnecessárias. O ambiente que estamos falando deixou de ser a pracinha do vilarejo - passou a ser a aldeia mundial. Coexistência é crucial. Algumas pessoas não aceitam isso. Não estão abertas a valores que não sejam os seus. Desejam o confronto. Encontramos gente assim tanto na Europa como no mundo islâmico. Infelizmente, elas são as beneficiárias do conflito que foi deflagrado pelas charges em um jornal dinamarquês. Mas se não nos opusermos a essas pessoas, correremos o grave risco de repetirmos alguns dos grandes erros da história. O risco foi explicado num poema muito pequeno escrito pelo falecido poeta e filósofo dinamarquês Piet Hein, em um de seus famosos "Grooks", denominado "Essa é a questão": "Coexistência ou não existência".