Título: Confrontos no Rio põem à prova nova política de segurança
Autor: Grabois , Ana Paula
Fonte: Valor Econômico, 19/10/2009, Especial, p. A14

A política de segurança pública planejada e colocada em execução pelo governo do Rio de Janeiro foi duramente posta à prova no fim de semana quando um helicóptero da Polícia Militar caiu - e depois explodiu - após ser atingido por tiros de traficantes na zona norte do Rio, matando dois PMs. O saldo, em dois dias de confronto, foi de 14 pessoas mortas e muitos ônibus incendiados. O secretário de Segurança Pública do Rio, José Mariano Beltrame, disse que a estratégia adotada pelo Estado no combate ao crime organizado não será desviada. "Vamos continuar nosso trabalho. Isso, absolutamente, (não) vai fazer com que nossa estratégia se desvie", afirmou ele, em entrevista coletiva concedida no fim de semana. Ao Valor, na entrevista abaixo, o secretário foi claro sobre as ações da polícia. "Enfrentamos quem nos enfrenta", disse.

As mudanças adotadas pelo governo fluminense estão baseadas em aumento dos serviços de inteligência e na maior ocupação de favelas, além da renovação e do aumento da tropa policial, acompanhados de recomposição salarial. Elas miram um cidade mais segura durante a Copa do Mundo em 2014 e na Olimpíada de 2016, mas o objetivo não é esse, diz o secretário. "Nossa preocupação básica é planejar a segurança para a cidade, para o cidadão, não para um período", afirmou ele, em entrevista ao Valor na semana passada.

Nesse trabalho, a secretaria tem dado ênfase ao que Beltrame chama de "inteligência" - e segundo ele essa estratégia tem conseguido antecipar mais de 80% das invasões de comunidades por traficantes rivais. No sábado, a polícia tinha informação sobre uma possível invasão de traficantes de outras favelas ao morro dos Macacos, na zona norte do Rio. Os bandidos entraram na favela a pé, de forma gradual. De acordo com Beltrame, a tentativa de invasão ao Morro dos Macacos, foi diferente de outras ações do tipo, quando criminosos organizam "um bonde", composto por várias pessoas, mas desta vez os bandidos começaram a entrar na favela dias antes, em duplas ou sozinhos. O ataque final estava marcado para o sábado.

A invasão provocou os confrontos que levaram à queda do helicóptero no sábado. Segundo números preliminares, dois policiais morreram e outros seis ficaram feridos na operação. Outras dez pessoas foram mortas (a PM diz que todos são criminosos, os moradores contestam). A PM montou um gabinete para gerenciar a crise e suspendeu as folgas de policiais.

Ex-delegado da Polícia Federal, gaúcho de Santa Maria, Beltrame pretende apresentar em março um estudo sobre a necessidade de uma polícia mais qualificada e que atraia profissionais mais bem formados. O plano envolverá aumento de salário. A intenção, diz, é pedir ajuda financeira ao governo federal para os jogos de 2016. O secretário diz que não vai mudar a atual política, focada no enfrentamento em algumas localidades e na implementação da ocupação policial em favelas antes dominadas por grupos armados ligados ao tráfico de drogas ou a milícias. Desde dezembro, cinco favelas cariocas (Dona Marta, Cidade de Deus, Chapéu Mangueira, Batan e Babilônia) estão sob ocupação policial. A meta é levar a experiência a 47 favelas. A entrevista a seguir foi concedida ao Valor na semana passada, antes, portanto, dos confrontos do fim de semana.

Valor: Vai haver mudança na política de segurança pública para a Olimpíada de 2016?

José Mariano Beltrame : Não vou dizer que não há problemas, que não há o que estruturar, mas resolvemos os problemas. Pega-se a Polícia Militar, a Polícia Civil, pede-se apoio da Força Nacional. Como é um evento internacional, pede-se apoio da Polícia Federal, da Polícia Rodoviária Federal. Se for o caso, pede-se ao Exército, pede-se a Marinha para auxiliar no que diz respeito a mar e até o espaço aéreo. Mas nossa preocupação básica é planejar a segurança para a cidade, para o cidadão, não para um período. Não dá para preparar a cidade para 15 dias, 20 dias, trazer essas instituições e forças fazendo uma segurança que não é segurança para o cidadão permanentemente. Depois, essas forças vão embora e volta o problema. Estamos trabalhando no sentido de melhorar o dia a dia com ações de curto, médio e longo prazos.

Valor: O fato de o Rio sediar a Olimpíada de 2016 mudou a política para o dia a dia?

Beltrame: Não, porque no início do governo fizemos o planejamento. Quando veio a Olimpíada, fomos ao Comitê Olímpico Internacional e dissemos que reconhecemos problemas, mas que temos um plano, um horizonte para a segurança pública e estamos trabalhando. Quando vimos que segurança não era um problema citado como chave, que seriam outros serviços, ficamos muito satisfeitos. O comitê entendeu que estávamos num caminho coerente.

Valor: O dossiê do Comitê Olímpico Brasileiro diz que haverá muito reforço das tropas e criação de várias centrais de inteligência.

Beltrame: Como é um evento internacional, a organização é do governo federal. O Estado do Rio fica subordinado. Temos essa possibilidade, assim como podemos trazer policiais do interior. A outra possibilidade se dá dentro dessa política permanente: organizar concursos públicos, como já estamos fazendo. O nosso forno de formar policiais não pode mais parar. O efetivo é de 37 mil policiais e podemos chegar a 62 mil policiais até 2016. Temos a promessa das secretarias de Fazenda e do Planejamento de fazer os concursos dentro de um cronograma organizado, para que esses policiais ingressem na academia e saiam com dois focos. Um para repor os efetivos da tropa, que são do início da década de 80. Isso não é coisa para os jogos, é uma necessidade do Estado. E uma parte desse pessoal vai para a continuidade do projeto das unidades pacificadoras. Os novos policiais têm esses dois caminhos.

Valor: E a formação desses policiais?

Beltrame: Todo o currículo foi alterado, hoje eles têm aulas de direitos humanos, de uma polícia de proximidade, introdução em sociologia, aulas práticas melhores, a academia está investindo R$ 15 milhões para ter um local adequado. Esperamos mudar, na verdade, a cultura dessa polícia. E também estamos cobrando resultados. Os delegados comandantes estão trabalhando com metas, como na iniciativa privada, mas não é a aquela obrigação de conseguir a meta ou, caso contrário, vai ser decapitado. É a cultura de perseguir a meta.

Valor: Quais são as metas?

Beltrame: Elegemos quatro delitos principais: homicídios, roubo a transeunte, roubo de veículo e latrocínio. Eles têm de baixar. Um índice desse para baixar tem que desacelerar e depois passar por um processo de queda.

Valor: E a questão salarial?

Beltrame: Já levei para o governador. Começamos a ouvir falar em despoluir a lagoa Rodrigo de Freitas, a baía de Guanabara. Mas entendo que precisamos mudar a cabeça desse policial, a cultura desse policial. Para que isso aconteça, precisamos melhorar o salário e a qualidade da entrada desse policial. Vamos fazer um estudo até março e levar ao governador. Até agora apresentamos soluções para a segurança pública, mas queremos mudar o comportamento desse policial, não só com essa visão da iniciativa privada, mas com a visão salarial, da autoestima, de um cara preparado.

Valor: Quanto ganha um policial iniciante?

Beltrame: Em torno de R$ 1 mil. É o segundo pior salário do Brasil. Mas agora tem mais R$ 350 para quem está na rua e 5% de aumento real que todo mundo vai ganhar.

Valor: E esse estudo vai se concentrar em qual assunto?

Beltrame: Fala de salário e da qualidade do policial. Temos que tornar as instituições policiais sedutoras para um jovem. Nas unidades pacificadoras, o policial ganha R$ 500 da gratificação da prefeitura e bolsa de R$ 400 do Pronasci (programa de qualificação do Ministério da Justiça) ao fazer o curso a distância. Já muda muito, o salário vai para R$ 1.900. Na realidade brasileira, é carreira atrativa, mas temos de melhorar muito. Temos um projeto, via Ministério da Justiça, de criar uma Universidade da Polícia. São coisas de longo prazo, a ideia é ver se o governo federal pode ajudar.

Valor: Qual a avaliação da ocupação policial nas favelas?

Beltrame: Não tem nenhuma igual. São muitas variantes. Em primeiro lugar, tem o acesso. O Dona Marta só tem dois acessos, uma entrada e uma saída, é relativamente pequeno, está no centro da cidade. Cidade de Deus é totalmente diferente, tem uma história de violência de quase 50 anos, teve filme lá, é muito estigmatizada e tem uma infinidade de entradas e saídas, tem zonas de pura miséria. O Dona Marta já não é mais assim, a condição socioeconômica das pessoas é melhor. O retorno que temos é excelente. Dentro dessas unidades, os índices de criminalidade são muito bons. Cidade de Deus teve um homicídio e tem 80 mil habitantes. Dona Marta teve zero homicídio. Ainda assim, a polícia trabalha, tem ações pequenas. O grande foco da unidade pacificadora não é a pretensão de acabar com o tráfico e com a violência. É a questão da territorialidade, aquele achincalhe, de mostrar fuzil, mostrar pistola, você vai lá e perguntam o que vai fazer lá, isso não existe mais. Estamos abrindo território para que os serviços, públicos ou privados, cheguem.

Valor: Na zona oeste, as milícias, além de dominarem o território, são donas de tudo, do comércio, da van, do gás, da TV a cabo ilegal...

Beltrame: A gente pegou a pior milícia e fez esse trabalho na zona oeste. Hoje está melhor. Ao combater esse grupo maior, isso se refletiu nas milícias menores. Ainda tem esse problema, se atacou, mas ainda não terminou o trabalho lá.

Valor: E o domínio do comércio, do transporte, pelas milícias?

Beltrame: Aí transcende nossa área. O que tem de ser feito? Legalizar as vans e, em contrapartida, os empresários fornecerem serviços para atender a demanda. Não adianta a polícia ir lá e combater as vans. Quem vai parar? A van chega e descem 15 pessoas. Quem vai conduzi-las?

Valor: Existe alguma articulação do governo com os empresários?

Beltrame: Não é a minha seara, mas existe. Participei da reunião com os empresários de ônibus e eles estão dispostos a contribuir, porque o transporte clandestino só termina no dia em que a população tiver ônibus. Eles se comprometeram a colocar entre 100 e 110 ônibus suplementares.

Valor: Há planos de expandir a ocupação nas favelas dominadas pelos grupos armados?

Beltrame: Temos 100 unidades listadas, fizemos um ranking e já fizemos um planejamento para 47 na cidade do Rio.

Valor: Até quando essas 47 unidades serão implementadas?

Beltrame: Preciso coordenar isso com a formação de policial. Às vezes, as pessoas me desafiam e dizem: "Isso vai levar um tempão". Pode levar um tempão, mas é uma meta. O plano a ser seguido é inédito. O Rio levou 40, 50 anos, para deixar isso no estado que ficou. Temos de fazer o caminho inverso e não há mágica.

Valor: E para este ano?

Beltrame: Faço mais cinco até dezembro. Fechando isso, são dez comunidades, quase uma por mês. Em dezembro, formo 300 policiais. Em março, formo 1.300 e podemos fazer cinco ou seis pequenas comunidades ou uma grande.

Valor: O plano é formar quantos policiais novos para o projeto da pacificação de favelas?

Beltrame: Se passarmos de 37 mil para 60 mil, seriam 33 mil formados. Metade vai para o policiamento ostensivo, porque tem de recuperar 20, 30 anos, de abandono. O quadro da polícia é de 1982, é como se a população de lá para cá não tivesse crescido e as demandas não tivessem aumentado. Se aposentam entre mil e 1,3 mil por ano e entravam apenas 900. A conta que não ia fechar nunca.

Valor: O sr. recebeu críticas em relação à politica de enfrentamento nas favelas, porque gerou confrontos com mortes até de policiais...

Beltrame: Não é uma política de enfrentamento, esse discurso é bem antigo. Trabalhamos com investigação e descobrimos determinados locais onde existem paióis e atuação forte do tráfico. Não é a venda, é onde as pessoas que comandam ações criminosas estão reunidas. Então a gente planeja uma operação e vai. No caminho disso, há pessoas, que além de não aceitarem o comando do Estado, rechaçam a ação do Estado. A obrigação do Estado é proteger o cidadão, mas no momento em que o cidadão faz uso de uma arma para se defender do Estado, está abrindo mão do direito de ser defendido. A polícia se depara com essa situação e nós temos duas opções: ou desistir ou cumprir a função. Quem se rende à ação do Estado vem preso. Quem não se rende, responde pelos atos que praticou. Enfrentamos quem nos enfrenta.