Título: Acordo pode beneficiar o mercado de capitais
Autor: Sester , Peter
Fonte: Valor Econômico, 24/08/2010, Opinião, p. A10

A América Latina, em especial o Brasil, está na ordem do dia na Europa, particularmente na Alemanha. Finalmente! Em maio deste ano, a União Europeia e o Mercosul, após anos de pausa nas negociações, recolocaram em pauta um amplo acordo de livre comércio. A primeira rodada das novas negociações deu-se em julho deste ano. No dia 5 de agosto, o ministro das Relações Exteriores alemão, Guido Westerwelle, anunciou um plano estratégico para a América Latina. O Brasil detém, em todas essas iniciativas, uma posição especial. E para isso existem muitas razões econômicas, políticas e sociais. Não menos importante, ao lado da força econômica do Brasil, é a sua recente participação no processo G-20 e na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

Para empresas e agentes do mercado de capitais, o acordo de livre comércio pode abrir enormes chances para o futuro. Mas, neste momento, para tanto, terão de impor as devidas exigências aos negociadores, não podendo deixar o campo somente aos representantes da economia agrícola, que interferiram massivamente no passado, atrapalhando o processo de negociações. Para que as propostas e questões em relação ao acordo de livre comércio sejam corretamente colocadas, faz-se imprescindível o conhecimento sobre as principais manobras do Direito Econômico europeu.

Atualmente, as relações entre a União Europeia e o Brasil baseiam-se no acordo-quadro de cooperação UE-Brasil de 1992, no acordo-quadro de cooperação UE-Mercosul de 1995, assim como no acordo de cooperação científica e tecnológica de 2004. No ano de 2007, foi acordado na primeira cimeira UE-Brasil em Lisboa o início de uma parceria estratégica, cujos fins foram formulados pela UE no documento de estratégia para o Brasil. O planejado acordo de livre comércio, que vai muito além de questões econômicas, deve se tornar o "motor" dessa parceria. A propósito, há alguns anos Chile e México fecharam um acordo de livre comércio com a União Europeia.

Em que consistem as mencionadas manobras do Direito Econômico europeu? As leis europeias sobre direito societário e mercado de capitais distinguem, fundamentalmente, dois grupos de atores e produtos financeiros. Um grupo abrange os atores estabelecidos num Estado-membro ou os produtos primeiramente admitidos para a negociação no mercado europeu; o outro grupo abrange atores e produtos de terceiros Estados, como o Brasil. Enquanto "passaportes" europeus são exarados aos atores e produtos do primeiro grupo, podendo eles, em princípio, moverem-se livremente dentro do mercado europeu, os membros do segundo grupo devem, antes de tudo, superar o obstáculo de obter o reconhecimento jurídico europeu. Esse reconhecimento só será concedido se, de fato, os atores e produtos forem regulados, em seus países de origem, de forma comparável à regulação existente na União Europeia.

Por exemplo, uma companhia emissora, que já possui prospectos de distribuição pública credenciados pela CVM, pode também distribuir na Europa valores mobiliários utilizando o mesmo prospecto, se a instrução da CVM pertinente puder ser comparada com a diretiva europeia. Regras de reconhecimento similares para a permissão de operar no mercado financeiro existem, também, na diretriz europeia para fundos de investimento, assim como, na diretriz planejada para private equity e hedge funds.

De acordo com as leis europeias, esse reconhecimento depende do pré-requisito de que a regulação do terceiro país esteja em conformidade com as normas internacionais. Aqui o Brasil tem uma vantagem decisiva, já que a CVM persegue, há anos, uma política de adaptação aos padrões internacionais, como às normas da Organisation Internationale des Commissions de Valeurs (OICV). E mais: justamente nos últimos anos, demonstra-se uma harmonia cada vez maior entre as instruções da CVM e as diretrizes europeias. Um exemplo proeminente deste ano é a sugestão da CVM para a reforma da instrução sobre oferta pública de aquisição. Essa política da CVM, que se orienta em padrões internacionais, pode criar uma nova vantagem para as empresas brasileiras e para os atores do mercado financeiro. Mas para que se tire proveito dessa vantagem, os dois grupos devem exigir que o acordo de livre comércio tenha regras claras para o reconhecimento das permissões concedidas pela comissão. Isso lhes garantirá o acesso ao mercado de capitais europeu com baixos custos de transação.

No entanto, essas exigências por parte do Brasil não poderão ser feitas sem que, ao mesmo tempo, seja feita uma proposta recíproca aos europeus. Enquanto as instruções da CVM correspondem aos padrões internacionais, esse não é sempre o caso das leis brasileiras. Fora dos padrões internacionais, por exemplo, estão as normas para o reconhecimento das sociedades estrangeiras, bem como a lei do direito internacional privado, promulgada em 1942, na Era Vargas.

Peter Sester é professor do curso sobre União Europeia, no Insper, é professor honorário na Universidade de Freiburg e professor na Universidade de Karlsruhe (ambas na Alemanha).