Título: Mercado vai às urnas de olho na inflação
Autor: Bittencourt , Angela
Fonte: Valor Econômico, 29/09/2010, Política, p. A9

A consolidação de avanços institucionais reduziu o espaço para especulação financeira no Brasil. De 2002 para 2010 o país mudou para melhor. O mundo, para pior. O Brasil consolidou o tripé de política econômica, orientado pelo regime de metas de inflação, câmbio flutuante e disciplina fiscal. Saiu inteiro da crise global. O mundo, em meio a fragilidades econômico-financeiras, patina num caos fiscal. Esse cenário diverso, mas de um Brasil vencedor, inspira confiança na continuidade da política econômica e é condição adicional para a calmaria que prevalece nos mercados às vésperas do 1º turno das eleições gerais.

A estabilidade dos ativos financeiros confirma crédito dos mercados ao novo governo. Mas a inflação está sob escrutínio. A projeção 12 meses à frente, de 5,6% às vésperas da eleição de 2002, oito anos depois crava 5,15%. A resistência das projeções acima do centro da meta, fixado em 4,5% até 2012 e por oito anos consecutivos, está na mira do mercado e dá pista de que as prioridades de política econômica do próximo presidente sofrerão vigilância diuturna. E deslizes podem acabar com a calmaria a qualquer momento.

A possibilidade de rápido delineamento do novo governo, caso a favorita ao Planalto, Dilma Rousseff, emplaque no 1º turno, já turbina expectativas sobre o comando do Banco Central (BC) e as diretrizes das políticas monetária e cambial. A pressa por definições, sem repercussão sobre os negócios, é embalada pelo persistente ruído provocado pelo que o mercado considera mudança de posicionamento do BC nas decisões mais recentes sobre o juro básico do país. Parte do mercado considerou frustrada a expectativa de que o BC seria intransigente com a inflação. E de um embate silencioso sobre o fôlego da atividade restou o temor quanto a um BC leniente com prejuízos para o controle da inflação.

Essa visão de curto prazo não desabona, entretanto, a constatação de que o juro básico recuou em ritmo inédito no governo Lula. Seguem como exemplos do Brasil diverso, a queda da Selic quase à metade em oito anos com extensão aos juros cobrados de consumidores. Opção do governo pelo incentivo ao consumo, dinheiro relativamente mais barato e fortalecimento da renda propiciaram forte alavancagem do crédito que praticamente dobrou em proporção do PIB, com o escoamento de R$ 1,2 trilhão dos bancos.

O câmbio também ganha foco nesse momento pela firme valorização do real, pelo discurso do Ministério da Fazenda e agora do BC acenando com tributação de capital estrangeiro e pela entrada de um novo ator no mercado: o Fundo Soberano. Ainda que o BC coordene a atuação do Fundo na compra de dólares, a demora em esclarecer procedimentos operacionais vem semeando tensão. Mas é fato que o câmbio passou a ter nova configuração no Brasil.

Às vésperas do pleito em 2002, a taxa de câmbio exibiu brutal desvalorização alavancada por temores com a chegada ao poder de uma esquerda desconhecida, pela fragilidade das contas externas e pela penúria das reservas internacionais. Hoje, o câmbio ainda revolve polêmica. Mas às avessas, induzida pelo real fortíssimo, também pela conjuntura internacional adversa à moeda americana, e pelo desafio imposto à gestão de reservas sete vezes superior aos minguados US$ 38 bilhões de setembro de 2002.

O salto das reservas é traço de avanços viabilizados por uma condição política e outra econômica explícitas antes do pleito de 2002: o compromisso de manutenção da política econômica pelo candidato Luiz Inácio Lula da Silva e a trajetória da China como estrela emergente. Sem a China e seu apetite por commodities que levaria ao fortalecimento das exportações brasileiras, sancionando a política de acumulação de reservas cambiais, a história recente do Brasil poderia ter outro enredo.

A marcação a mercado dos títulos públicos, hoje rotina contábil mas que baratinou o sistema em 2002, é outro exemplo de avanço bem conduzido ainda que forçado pelos fatos. A reação exagerada dos mercados ao candidato Lula precipitou a fuga de dinheiro para o curto prazo e forte desvalorização dos papéis federais de longo prazo. Impor a marcação a mercado, na tentativa de conter perdas a pequenos investidores, foi decisão do BC que levou o sistema a uma configuração moderna.

A adoção de um novo Sistema de Pagamentos, também em 2002, atualizou ainda mais o Brasil ao impor novo ritmo à liquidação das transações financeiras. O fim dos pregões viva-voz da Bolsa de Valores de São Paulo em 2005 e da Bolsa de Mercadorias & Futuros em 2009 e a consolidação dessas bolsas também levaram o mercado a algo mais próximo das grandes economias.

O ajuste do perfil da dívida pública interna, principalmente quanto à desindexação cambial, e a política de acumulação de reservas conduziram o risco Brasil a grau de investimento. Essas mudanças, combinadas a um vigor extraordinário do consumo doméstico, escoraram o Brasil quando a crise financeira atropelou o mundo em 2008.

Na esteira da crise, o país obteve um reconhecimento com impacto tão relevante para a comunidade financeira internacional quanto o grau de investimento: o Federal Reserve elegeu o Brasil como um dos 15 países com acesso à linha de swap de dólares americanos. A linha, sem condicionalidades à política econômica, não chegou a ser usada. O sinal verde do Fed para o swap também revelou a importância sistêmica do Brasil no mundo.

O país se virou muito bem. Sozinho. A gestão da crise pelo governo --com ativação de instrumentos monetários e regulatórios pelo BC e fiscais pela Fazenda-- foi adequada. E uma das vantagens brasileiras foi a possibilidade de a autoridade monetária agir, com providências administrativas e independentes de subordinação a trâmites do Congresso. É fato que a crise balançou o crescimento brasileiro, mas as perspectivas tornaram-se incomparáveis de 2002 para cá. Isso também vale para a taxa de desemprego que estampa o virtuoso momento brasileiro.

Tantos avanços também têm custos tão emblemáticos, quanto arriscados. Cobram compromissos. É fato que o espaço para aventuras encolheu, graças ao amadurecimento macroeconômico do país. Mas o risco de escolhas e decisões erradas, do ponto de vista do mercado, existe. Por ora, esse risco não trinca a confiança de que o governo preservará as conquistas alcançadas. Mas desafios virão. E aos montes. Entre eles, a definição de uma nova agenda que acabará se impondo, se nada for feito.

A agenda deverá ser pautada por definições rigorosas na política fiscal, no trato do aumento da competitividade da economia e na segurança jurídica. É certo que a confecção da nova agenda vai mirar o cenário externo, pois ainda ainda que tudo caminhe bem e sobre dinheiro para o mundo emergente, o país terá de fazer por merecer --seja investimento, seja financiamento. O déficit externo, de 1,5% do PIB em 2002 que pode chegar a 3% do PIB em 2011, estará aí para lembrar o governo de que a qualidade de sua gestão política mas sobretudo econômica será o bilhete de ingresso de capitais estáveis e consistentes.

Um ajuste fiscal estrutural deverá ser feito. Mobilização tardia nesse sentido pode arranhar o crédito do novo governo, mas dificilmente surpreenderá espectadores externos e domésticos que reconhecem a questão fiscal como destaque perene da agenda brasileira. Por mais reticentes que sejam as iniciativas para aprovar as reformas tributária, previdenciária e trabalhista, expectativas serão renovadas ante a confortável maioria governista no Parlamento.

No sistema financeiro, que elege entre prioridades a desindexação das operações ao juro de curtíssimo prazo e fôlego para um mercado secundário de instrumentos que financiem o longo prazo, a independência do BC permanece como o alvo mais almejado. Vai dar para alcançar esse estágio? Talvez não, considerando que nada foi feito nos últimos oito anos de inédita estabilidade na presidência da instituição.

O mercado já torce, portanto, por um BC conservador, exigente e focado no seu principal mandato que é manter a inflação na meta. Isso, porque o histórico do país confirma que inflação nos trilhos é sinônimo de poder de compra que leva à inserção social. A preferência dos eleitores confirma que essa, sim, é uma das maiores conquistas dos brasileiros. Em qualquer tempo.