Título: Reservas, BNDES e dívida pública
Autor: Garcia, Márcio
Fonte: Valor Econômico, 23/12/2010, Opinião, p. A15

É inegável a melhora nos indicadores do endividamento público no Brasil. Quando comparados aos de países desenvolvidos, que aumentaram muito suas dívidas para mitigar a recessão e salvar seus sistemas financeiros, nossos indicadores ficam ainda mais destacados. Não obstante, há duas ações de política econômica que vêm repercutindo negativamente sobre a dívida pública brasileira: a acumulação de reservas cambiais oriundas das intervenções esterilizadas do Banco Central (BC) e os empréstimos do Tesouro Nacional a instituições financeiras oficiais, notadamente ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

Ambas as ações aumentam a dívida bruta sem afetar a líquida (que desconta os principais ativos do setor público). No caso das intervenções cambiais, o setor público adquire um ativo, as reservas cambiais, como contrapartida do passivo emitido, a dívida pública. No segundo caso, os empréstimos do Tesouro ao BNDES constituem ativo adquirido pelo setor público.

Ainda que não aumentem, no primeiro momento, a dívida líquida, as duas operações são muito onerosas ao longo do tempo. No caso do acúmulo de reservas cambiais, estas rendem os reduzidos juros em dólar pagos no mercado internacional. O Relatório de Gestão das Reservas Internacionais, no site do BC, informa que as reservas renderam parcos 0,83% em 2009. Já no caso do BNDES, os empréstimos do Tesouro pagam algo próximo da TJLP (6% ao ano). Para financiar as duas iniciativas, emite-se dívida pública, a juros hoje iguais ou superiores à taxa Selic (10,75% ao ano). O resultado pode ser visto no gráfico 1. Embora a taxa Selic tenha caído substancialmente desde 2008, a taxa de juros implícita da dívida líquida praticamente não se modificou. A razão disso é que as operações citadas encarecem muito a dívida líquida, pois envolvem trocas de ativos que rendem pouco por passivos muito onerosos.

A acumulação de reservas cambiais, além de encarecer a dívida líquida, tem também o efeito de deteriorar o perfil da Dívida Pública Mobiliária Federal Interna (DPMFi, constituída pelos títulos públicos emitidos no Brasil). Para comprar os dólares, o BC emite moeda. Imediatamente, o mesmo BC precisa retirar a moeda emitida do mercado, ou a taxa Selic cairia, impedindo-o de atingir a meta fixada pelo Copom. Tal operação de "enxugamento" da liquidez gerada pelas compras de reservas é conhecida por esterilização.

No Brasil, as operações de esterilização vêm sendo conduzidas via colocação de operações compromissadas, em vez da venda de títulos públicos mais longos.

No gráfico 2, vê-se que, desde 2005, ocorre nítido aumento do prazo médio da dívida. Isto é muito bom, pois diminui o risco de rolagem e incentiva o necessário alongamento dos prazos do mercado de renda fixa. O prazo médio da DPMFi supera hoje 41 meses.

A esterilização das compras de dólares e os empréstimos a bancos oficiais deterioram a dívida pública

Entretanto, se forem consideradas (como devem ser) as operações compromissadas, o prazo médio é bem menor, cerca de 33 meses. É verdade que aumentos dos compulsórios sobre os bancos, como os anunciados no início e no fim de 2010, tendem a mitigar a queda no prazo médio, pois os bancos trocam as operações compromissadas por depósitos compulsórios no BC. Mas, mesmo tendo esse efeito em conta, a prosseguirem as onerosas intervenções esterilizadas, o prazo médio da dívida pública continuará a cair, a menos que o Tesouro e o BC passem a colocar dívida mais longa no lugar das operações compromissadas.

As análises da DPMFi disponíveis no site to Tesouro tipicamente ignoram as operações compromissadas. Isto é curioso, uma vez que elas representam hoje 25% da DPMFi (já tendo passado de 35% no passado recente). Os gráficos ali apresentados, que mostram a diminuição da proporção da dívida vincenda em 12 meses, ou a composição por indexadores da dívida pública, não refletem corretamente o conjunto da dívida mobiliária interna.

Em suma, novas intervenções esterilizadas e novos empréstimos do Tesouro ao BNDES devem ser submetidos à análise custo-benefício. Entre os custos, além do aumento de dívida bruta, devem ser incluídos o encarecimento da dívida líquida e a deterioração do perfil da dívida mobiliária.

Márcio G. P. Garcia , PhD por Stanford e professor do Departamento de Economia da PUC-Rio, escreve mensalmente às sextas-feiras. (www.http:www.econ.puc-rio.br/mgarcia)