Título: Dilma vai se impor ao Congresso com a rua
Autor: Wagner, Jaques
Fonte: Valor Econômico, 15/02/2011, Especial, p. A16
Pelo poder que acumulou nos governos do PT, o governador da Bahia, Jaques Wagner, já pode ser chamado de vice-rei do Nordeste. Assim era chamado outro poderoso baiano, Antonio Carlos Magalhães, o ACM, cujo ocaso foi apressado pela primeira vitória do "Galego" ao governo baiano, em 2006. "Galego" era como o chamava o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva; agora ele é "Jaquinho", forma carinhosa como o chama a presidente Dilma Rousseff, em cujo governo ele emplacou nada menos do que três ministros de Estado, além de manter o presidente da Petrobras, José Sérgio Gabrielli, a maior estatal brasileira.
"Jaquinho" não gosta de comparações com ACM, símbolo de um tempo em que, segundo ele, "o limite da autoridade não era a lei, era a vontade da autoridade". A rigor, ele só reconhece ter indicado Gabrielli. Wagner diz que o aumento da violência no Nordeste, evidente na Bahia, é também resultado do crescimento econômico e se declara um "torcedor de Dilma". Segundo "Jaquinho", não existe o menor risco de Dilma evitar medidas duras - como o anunciado corte de R$ 50 bilhões no Orçamento - necessárias para impedir a volta da inflação. "Não apostem, em nenhuma hipótese, dessa mulher brincar com isso", diz.
Abaixo, trechos da conversa com o governador, em um jantar com o Valor, em Brasília:
Valor: O senhor é o novo vice-rei do Nordeste?
Jaques Wagner: Não, eu apenas sou disciplinado, sou homem de projeto. Trabalho pelo projeto. Foi assim com o presidente [Luiz Inácio] Lula [da Silva], a quem servi diretamente. Tenho projeto político, tenho lealdade. Essa invenção de que eu nomeei tudo não é verdadeira.
Valor: Mas sua ligação com a presidente é realmente especial?
Wagner: Eu tenho uma bela relação com ela, construída nos momentos mais difíceis do primeiro governo do presidente Lula. Na chamada crise do mensalão, ela ficou fazendo a gestão na Casa Civil e fui fazer a coordenação política. Fomos construindo uma relação. Na transição, trouxe o Gabrielli [José Sérgio, presidente da Petrobras] e apresentei a ela, o presidente Lula já a conhecia de trabalhos para o Instituto de Cidadania. Depois ela virou ministra das Minas e Energia, eu ministro do Trabalho. Depois virei coordenador político e ela ministra da Casa Civil. Passamos várias noites no Palácio do Planalto apanhando bastante da oposição.
Valor: A crise de 2005, do mensalão, os aproximou ainda mais?
Wagner: Naqueles momentos mais difíceis criou-se relação de amizade que considero, hoje, uma relação de amizade dentro de casa: eu, ela, a filha dela, minha mulher Fátima, várias vezes que ela foi à Bahia dormiu com a gente lá em casa, fui ao casamento da filha dela. É uma relação forte.
Valor: Então estão certos os que atribuem ao senhor muito poder...
Wagner: É uma avaliação equivocada. Amigo, nessas horas, é mais chamado para o sacrifício: "só você, amigo, para aguentar isso aqui".
Valor: O apadrinhado é muito fiel, dá vantagens ao padrinho?
Wagner: Eu não faço briga de posições. Um ministro aqui não resolve minha vida. Preciso do Guido [Mantega, ministro da Fazenda], do [Fernando] Haddad [ministro da Educação], do [José Eduardo] Cardozo [ministro da Justiça], da Miriam [Belchior, ministra do Planejamento], de todos.
Valor: Mas um que lhe deve o cargo, ajuda mais...
Wagner: Governador de um Estado do meu tamanho, com um orçamento péssimo, o pior orçamento per capita do país, com o tipo de negócio que temos, muita isenção, muita coisa é de commodities para exportação, meu orçamento total, ano passado, é de R$ 23 bilhões. Para 14 milhões de habitantes, 570 mil quilômetros quadrados, a segunda malha rodoviária do país, só perde para Minas Gerais. Com um problema social que é próprio do Nordeste, próprio do Brasil, é até agudizado.
Valor: Que características esta questão social apresenta na Bahia?
Wagner: O maior volume de ligações do Luz para Todos é lá, o maior volume de Bolsa Família é lá. São R$ 2,1 bilhões anuais de Bolsa Família e benefícios de prestação continuada. É o que entra líquido no mercado, e quem tem Bolsa Família não faz como nós da classe média, que vai botando no banco. Gasta sandália havaiana, remédio, roupa, comida. Roda a economia lá embaixo, no fundão da Bahia. Imagina o que são R$ 2,1 bilhão. Isso é 10% do meu orçamento, entra na veia da economia. Por isso mudou a realidade. As pessoas olham para o Bolsa Família, a meu ver equivocadamente, como um programa social. Ele é um belíssimo programa de microeconomia.
Valor: O que mudou da Bahia de ACM para a de Jaques Wagner?
Wagner: Eu não sou de falar do passado. Afinal, ele não está aqui para se defender [Antonio Carlos Magalhães morreu em 2007]. Agora, eles deixaram 2,1 milhões de analfabetos e 70% da população rural sem acesso à água. Eu alfabetizei 790 mil, e agora em abril estou completando 1 milhão. É o maior programa, reconhecido pelo MEC, de alfabetização do país.
Valor: Mas a violência cresceu.
Wagner: Agora, em janeiro, os números começaram a decrescer de novo. Cresceu o número de homicídios, muito ligado a drogas.
Valor: ... e no entanto a violência...
Wagner: Cresceu a economia, cresceu o mercado, cresce o mercado de tudo, inclusive o de drogas.
Valor: Com as medidas de segurança no Rio e São Paulo os chefes do tráfico não podem correr para outros Estados, piorando a situação?
Wagner: Os chefes podem ir até para os Estados Unidos. E comandar o tráfico de lá. Agora, a logística dele tem que estar onde está o mercado. O mercado de cocaína, de crack, não se mudou, por obra das UPPs [Unidades de Polícia Pacificadora], do Rio para Salvador.
Valor: Mercado tem em todo lugar.
Wagner: Nós já temos o mercado da Bahia, que é infinitamente menor que o do Rio e de São Paulo. Se fosse assaltante de banco eu até concordaria, porque assaltante de banco assalta bancos, não precisa de mercado. Se tem desenvolvimento, você tem os problemas do desenvolvimento: ambientais, sociais e do tráfico.
Valor: O esquema de segurança de ACM não era mais enérgico?
Wagner: A briga de segurança é uma briga prolongada. Nós temos que melhorar muito. Eu aumentei mil vagas de presídio, tenho que aumentar mais 2 mil. Mudei a frota de veículos, tem 7 mil policiais novos. Havia uma cultura que ninguém sabia quem prendia e quem soltava, porque lá o limite da autoridade não era a lei, era a vontade da autoridade. Isso desconstroi a lógica de funcionamento de Estado. É preciso quebrar essa cultura. Mas fazer isso em quatro anos é difícil. Não culpo ninguém, a culpa é minha.
Valor: A Bahia deu também, no seu período de governo, um retorno eleitoral forte a Dilma.
Wagner: Todos reconhecem o trabalho que fizemos para a vitória da presidente. A Bahia deu o maior contingente de votos de frente para ela, em todo o país: ela ganhou do [José] Serra [candidato do PSDB] por 12 milhões. Da Bahia ela saiu com uma frente de 2,7 milhões. Eu trouxe para ela dois senadores, cinco deputados federais, um governador que se dispõe a ajudá-la politicamente, porque financeiramente é o contrário. Ela chora comigo, eu choro com ela.
Valor: O senhor não pediu nada em troca dessa vitória?
Wagner: Eu achei que era hora de a gente ter o Ministério da Integração Nacional, que tem uma simbologia muito forte para o Nordeste. Mas antes do PMDB o ministério fora ocupado pelo PSB, e o Eduardo Campos, governador de Pernambuco, também tinha pedido. Aí quem cede é o amigo.
Valor: Em troca do quê?
Wagner: Quando quem de direito falou que precisava compor com Eduardo, eu disse: não tem problema, não quero mais nada. Eu quero manter a relação. Isso para mim é mais importante do que ter um ministro. O Eduardo é presidente de um partido que tem trinta e tantos deputados, seis governadores de Estado, e por aí vai. Eu sou só um governador. O presidente do meu partido não sou eu. Eu parei de pedir, saí da disputa.
Valor: Houve um momento que o senhor liderou uma bancada de PT do Nordeste?
Wagner: Como sabia que a presidente tinha interesse em fazer um gesto na minha direção, o PT do Nordeste veio me pedir para ser o condutor dessa negociação. Aí eu fiquei capitaneando essa "tendência", que não existe, do PT nordestino. Reunimos com o Eduardo, mostrei que não tínhamos porque brigar, o governo queria atender a ele, propus compormos, facilitar a vida dela. Conseguimos fazer uma coisa desse tipo. Aí começaram a pedir o MDS [Ministério do Desenvolvimento Social], o MDA [Ministério do Desenvolvimento Agrário], quando eu vi que a coisa estava ficando complicada eu disse, estou fora. Eu não vou esgarçar a minha relação em função desse negócio. E caí fora.
Valor: Mas três baianos viraram ministros de Dilma.
Wagner: Mário Negromonte [Cidades] foi uma apresentação da bancada do PP. Um baiano. Eu apoiei. A Luiza Bairros [Promoção e Igualdade Racial] foi chamada por Dilma. Ela seria minha secretária na Bahia. Alguém lembrou dela em uma reunião. A presidente me ligou: "Jaquinho, a sua secretária, como é o trabalho dela?" Eu disse: "Eu adoro, vou mantê-la". E ela: "Você me cederia para vir fazer um trabalho no governo?" Eu digo: "Claro". É um ministério muito importante, porque pode não ter orçamento, mas tem uma simbologia muito grande. Política não se faz só com dinheiro, faz-se também com simbologia.
Valor: E o ministro do Desenvolvimento Agrário, Afonso Florence, não é indicação sua?
Wagner: Era para ser a Lúcia Falcão, uma baiana que era secretária do governo de Sergipe. Aí veio a questão natural do PT. A DS [Democracia Socialista, tendência petista] reclamou que estava sendo excluída da participação [do PT no governo]. Puxa daqui, estica dali, tenta compor e o pessoal impôs que fosse alguém que viesse do Nordeste, porque sabia que não havia o equilíbrio petista Nordeste, Sul e Sudeste. A DS indicou o Afonso. Eu apoiei.
Valor: E o Gabrielli?
Wagner: É um grande quadro da academia, bom caráter, foi candidato a governador, deputado federal e aí veio para cá [diretoria da Petrobras]. O mercado reagiu: "um absurdo". Com um ano ele já estava sendo elogiado pelo mercado. Hoje é adorado pelo pessoal da Petrobras e pela presidente.
Valor: Mas é indicação sua.
Wagner: É óbvio que eu pedi. Agora, a manutenção dele não dependeu nem um pouco do meu pedido. Dependeu fundamentalmente do desempenho dele.
Valor: Em geral, os presidentes da Petrobras são acusados de corporativismo. Gabrielli é visto como um defensor do interesse do governo na empresa.
Wagner: Quem nomeia, em nome da sociedade brasileira, é o acionista majoritário da companhia. Pela legitimidade de 54 milhões de votos, gostando ou não, a presidente Dilma é a acionista majoritária, representa a sociedade brasileira. Se eu for um privatista, eleito pelo voto, eu boto a companhia para ser privatizada. Se eu não tiver essa visão, eu faço uma empresa eficiente, mas pública. Como ela é. Então essa é uma falsa dicotomia que se coloca. Por exemplo: as sondas da Petrobras. Nós vamos fazer um tremendo investimento de alguns bilhões de dólares, e um grupo técnico da Petrobras diz assim: "nós compramos mais barato em Cingapura". Mas eu que sou acionista majoritário digo "calma lá, tenho interesse de instalar uma indústria naval aqui dentro. Nós já tivemos, e foi rifada. E eu não vou comprar lá fora. Quem quiser vem fazer aqui dentro".
Valor: Gabrielli fica só até a eleição para o governo da Bahia, a carreira dele agora é política?
Wagner: Hoje ele está apaixonado pela atividade que está exercendo lá. Então é o roteiro dele. Mas a vida é assim. Meu roteiro não era este, deputado, ministro, governador. Eu era sindicalista. É legítimo, não é obrigatório, que o PT pretenda ter o meu sucessor. O [senador] Walter Pinheiro [que foi secretário de Planejamento da Bahia, em 2009] é um nome. O Gabrielli é um nome, assim como são os prefeitos de Camaçari [Luiz Carlos Caetano] e a de Lauro de Freitas [Moema Gramacho]. É cedo.
Valor: O início do governo mostra que há problemas na relação da presidente com o PMDB, por causa dos cargos. Não é um risco?
Wagner: Ela viveu oito anos ao lado do presidente Lula, dois como ministra das Minas e Energia e seis na Casa Civil, que era o posto de organização da gestão. Então ela sabe o quanto ajuda e o quanto não ajuda uma indicação não bem feita de um aliado. Não que ela rejeite indicações, que isso é da vida da política. Eu não vejo nada de criminoso em quem ajudou a construir ajudar a dirigir. Mas tem que combinar os dois critérios. Ministério ou secretaria não é lugar de cabo eleitoral. Secretaria é lugar de "político gestor". Para sentar numa cadeira de governador ou ministro, tem que ser bom de entrega de serviço, tem de ser bom de política. Tem que conversar com os Poderes, tem que conversar com os deputados. É uma falsa dicotomia. Eu acho que ela pode estar dizendo "moçada, vocês têm o direito, mas eu também tenho o direito de exigir determinado tipo de qualidade". O presidente Lula vem da política, e se apropriou da gestão; ela vem da gestão e vai se apropriar da política. São dois caminhos diferentes mas igualmente possíveis.
Valor: Como o senhor está vendo o início do governo Dilma?
Wagner: Eu sou suspeito porque sou torcedor. Entre os que não são torcedores eu tenho ouvido também avaliações positivas. Agora não há como os governos serem iguais. Porque ela não é igual a ele e ele não é igual a ela. Que bom que ela é mais recatada, porque o outro era mais saído. Não era isso o que vocês falavam?
Valor: Mas está dando resultado?
Wagner: Ela está organizando o governo, mudando o ministério, se assenhorar da máquina.
Valor: E a questão do salário mínimo já não mostra uma mudança em relação ao governo Lula, que sempre cedia à pressão das centrais sindicais?
Wagner: Em 2004, Lula não foi nem para o Primeiro de Maio. Não foi porque deu um reajuste que achava aquém do que merecia. Eu estava lá, era ministro do Trabalho. Ela está vivendo o primeiro ano de governo dela. Ela tem que fazer cortes.
Valor: A história recente mostra que para a inflação saltar de 6% para 12%, basta piscar os olhos.
Wagner: Nós estamos passando bem pela crise, mas não podemos brincar com a crise. Não apostem, em nenhuma hipótese, que essa vá mulher brincar com isso. Em nenhuma hipótese. Quem veio da política para a gestão não brincou, imagine ela. Na crise de 2005, Lula foi aconselhado a resolver tudo com uma canetada no Orçamento. Se ele quisesse ser populista, em 2005, jogava dinheiro para o alto, estourava com tudo que estava sendo feito, mas controlava o momento. Ele foi para a rua se defender.
Valor: A relação da presidente com o Congresso não está ficando perigosa, diante do corte de emendas, reajuste pequeno do salário mínimo, insatisfação por causa de cargos?
Wagner: A relação da presidente com o Congresso dependerá da relação dela com a rua. Se o país estiver bem, o Congresso estará bem. O Congresso tem um "feeling" perfeito e não joga contra quem está bem com a sociedade.