Título: De volta ao front
Autor: Leite, Larissa
Fonte: Correio Braziliense, 08/08/2010, Brasil, p. 10

As armas de brinquedo, que quase sumiram das lojas durante os anos 1990 quando uma lei proibiu o comércio das que se pareciam com as reais , retornam grandes e coloridas às mãos das crianças. Especialistas divergem sobre a eficácia na restrição a esses produtos

Amarelas, verde-limão, alaranjadas em cores berrantes, as armas de brinquedo estão presentes em 96 modelos certificados pelo Inmetro e nas mãos de crianças e adolescentes. Enquanto a brincadeira de matar e morrer, mocinho e bandido, divide a opinião de pesquisadores, as tais armas resistem às campanhas de desarmamento infantil e ao endurecimento da legislação. Desde a Lei nº 9.437, de 1997, é proibida a fabricação, comercialização e importação de armas de brinquedos que possam ser confundidas com as de verdade. O Estatuto do Desarmamento (Lei nº10.826), de 2003, acabou revogando a lei, mas manteve a norma. A partir de então, elas ganharam formas e cores marcantes e se tornaram mais presentes na indumentária dos bonecos. E se as atuais crianças encontram um amplo e colorido mercado à disposição, os adolescentes começaram a se voltar para armas de brinquedo semelhantes às verdadeiras e não recomendadas a menores de 18 anos que podem ser importadas apenas sob autorização do Exército.

O assunto saiu do âmbito familiar e voltou ao Congresso. O deputado Sebastião Bala Rocha (PDT-AP) propôs um projeto alterando o Estatuto do Desarmamento, com o objetivo de proibir a fabricação, a comercialização e a importação de qualquer arma de brinquedo mesmo as coloridas. Ao manusear armas de brinquedo, a criança cresce com o sentimento de que isso é natural, o que induz a uma possibilidade de envolvimento com violência na fase adulta, defende. O argumento, ao que parece, foi pouco eficaz: o projeto terminou arquivado. Ninguém diz claramente, mas um projeto com esse teor encontra a oposição de gigantes como a fabricante internacional Hasbro, que tem uma linha de brinquedos de ação. Em nota enviada ao Correio, a Hasbro sustenta que a linha estimula a brincadeira aliada à atividade física.

De isopor Pedro Henrique Borges Carvalho, de 6 anos, convenceu o pai a comprar armas para ele brincar com os primos, que já tinham. Gosto brincar de correr e atirar. Mas não gosto de ver no filme. Às vezes, dá medo, conta Pedro. O pai do garoto, Marcelo Anes Carvalho, 44, explica que preferiu dar o brinquedo e orientar quanto aos riscos de uma arma verdadeira. Se a criança brinca sem orientação, você perde o controle. E quanto mais se proíbe, mais a criança quer. Por isso, dei a arminha, expliquei a brincadeira, e isso fez com que ela se tornasse só mais um brinquedo, diz. Márcia Regina da Silva, mãe da criança, se incomoda com a existência de divulgação desse tipo de brinquedo. Antes de ele ter o brinquedo, pedia para eu cortar isopor no formato de arminha. O que não pode ter é divulgação. Isso banaliza a arma, afirma.

A advogada Mariana Ferraz, do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, diz que esse tipo de publicidade se aproveita da deficiência de julgamento das crianças. Diversas pesquisas já apontaram que a criança não reconhece a intenção persuasiva de uma publicidade. Elas não estabelecem diferença entre fantasia e realidade.

Para a advogada, seria necessária uma discussão sobre a restrição de propagandas voltadas para crianças. Atualmente, o Conselho de Autorregulamentação Publicitária (Conar) atende denúncias relacionadas à propaganda comercial. O conselho é pautado por um código que determina, no artigo 37, que nenhum anúncio dirigirá apelo imperativo diretamente à criança. O código ainda afirma que, quando os produtos forem destinados ao consumo por crianças, deverá dar atenção especial às características psicológicas do público-alvo, presumida sua menor capacidade de discernimento.

Se a criança brinca sem orientação, escondida, você perde o controle. E quanto mais se proíbe, mais a criança quer. Por isso, eu dei a arminha, expliquei a brincadeira

Marcelo Anes Carvalho, pai de Pedro Henrique Borges Carvalho, 6 anos, e marido de Márcia Regina da Silva

O número

R$ 3 bilhões

Faturamento previsto para 2010 da indústria de brinquedos, levando em conta a produção interna e as importações

O número

1%

Percentual de arminhas no total de brinquedos vendidos no país

Sucesso na campanha

Trinta mil armas de brinquedo. Esse é o saldo da Campanha de Desarmamento Infantil desenvolvida pela Guarda Municipal e Defesa Civil da Prefeitura de Fortaleza. Em 27 de julho, a quarta edição da campanha foi encerrada, com a coleta de 3 mil armas. A maior coleta de todas as edições foi em 2008, quando 17.095 armas foram arrecadadas. Os brinquedos são reunidos em postos de coleta nas escolas muncipais da cidade num total de 250 mil alunos.

De acordo com o diretor da Guarda Municipal, Arimá Rocha, os efeitos da campanha já são percebidos. Eu não conseguiria avaliar se diminuiu a violência na criança individualmente, mas as escolas com melhor resultado na campanha reduziram o número de conflitos e incidentes violentos, compara.

Enquanto as crianças entregavam as armas em Fortaleza, um grupo na internet participava de discussão intitulada Como comprar armas de brinquedo. Eles se referiam a armas semelhantes às verdadeiras, importadas da China, com preços entre US$ 4 e US$ 29. Para portar um simulacro, o cidadão brasileiro deve apresentar autorização do Exército. (LL)

Ponto crítico

Você é a favor do uso de armas de brinquedo pelas crianças?

SIM » Tânia Fortuna Eu já fui professora de crianças pequenas, e na época eu fazia uma campanha de pacificação com meus alunos. Eu recolhia todas as armas que apareciam em um armário, até o dia em que um deles pegou um galho de árvore e fez dele uma arma para matar o amiguinho. Quando eu vi, saí correndo e enfatizei pra ele que não podia brincar de matar nem de morrer. Ele simplesmente pegou seu próprio dedinho, olhou pro amiguinho e disse: Eu vou te matar. Nesse momento, percebi que a questão não era o objeto. Coloquei no centro do pátio da escola todas armas guardadas, e enxerguei que meu papel era justamente colocar as armas na roda, falar sobre elas. Percebi que colocava as armas no armário, mas a motivação de brincar com elas continuava dentro das crianças. Hoje, me dou conta de que a brincadeira é uma gestora das nossas angústias, brincamos porque precisamos. Ela ajuda a manter um equilíbrio psíquico entre verdade e fantasia, dos nossos medos e desejos. Por meio da brincadeira, conseguimos ver nossos monstros, enfrentá-los e matá-los. Com a brincadeira, não só crianças, como adultos, conseguem delinear melhor o que apavora. E nós precisamos matar nossos monstros. Ao tirar as armas das crianças, a fantasia relacionada ao medo e à morte continua. E ela continua buscando um alvo. E aí vem uma reflexão: queremos crianças mentirosas, ou conscientes do risco que uma arma efetivamente causa? A morte é um tema que a escola execra, mas é mais importante do que nunca abordá-lo.

Tânia Ramos Fortuna é coordenadora do programa de extensão universitária Quem quer brincar?, da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

NÃO Angela Branco Quando você entrega brinquedos para as crianças, está entregando miniaturas de coisas da vida, está sugerindo certas ações. Se você entrega uma arma, está sugerindo briga, violência e a eliminação do outro. Nem todas as crianças são atingidas da mesma maneira, porque aquelas com relações mais saudáveis e mais amor podem não sofrer uma influência negativa em função do brinquedo. Por esse lado, avaliamos que o impacto de uma brincadeira com arma em uma criança vai depender da estrutura que a abriga. Como o brinquedo representa uma sugestão, o melhor é que os pais e educadores sugiram brinquedos de construção, jogos de memória, quebra-cabeças. Tudo isso é muito mais saudável. Além disso, quanto menos sofisticado for um brinquedo, melhor para a imaginação da criança. As melhores brincadeiras são aquelas inventadas por ela. E o melhor brinquedo é aquele que a criança pode transformar em outra coisa. É difícil imaginar que uma arma possa se tornar um bercinho de boneca. Ela já traz em si uma mensagem: Atire. A questão não é inibir; é não estimular e transformar a raiva em outras atividades. Algumas pessoas de tradição da psicologia superada acreditam que é bom que a criança tenha uma catarse, que coloque para fora. Isso é um equívoco.

Angela Branco é professora do Departamento de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento da UnB