Título: A coalizão inflacionária
Autor: Romero, Cristiano
Fonte: Valor Econômico, 09/03/2011, Brasil, p. A2

Quase 17 anos depois do lançamento do Plano Real, o Brasil ainda padece de uma inflação alta para padrões internacionais e, pior do que isso, de uma cultura inflacionista. A recente aceleração de preços resulta não só de uma forte pressão de demanda e de um choque de preços de commodities, mas também da ação de grupos organizados pela reindexação da economia.

As centrais sindicais impuseram ao então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, como cobrança da fatura do apoio dado por elas durante a crise do mensalão, a super indexação do salário mínimo. Lula tinha o interesse legítimo de adotar uma política de recuperação do mínimo, que de fato era muito baixo, mas atrelar a sua correção à inflação passada e à variação do Produto Interno Bruto (PIB) de dois anos anteriores não foi uma boa solução. Por causa dessa regra, em janeiro de 2012 a mínimo terá reajuste de pelo menos 14%.

A indexação pressiona a inflação porque cerca de metade da população economicamente ativa, além de 18 milhões de aposentados e outros tantos milhões de trabalhadores da economia informal, ganha um salário mínimo por mês. Os rendimentos, portanto, de uma parcela significativa da população têm crescido bem acima da inflação, pressionando, especialmente, os serviços, um dos vilões dos índices de preços.

As centrais sindicais pressionam pela indexação, mas não aceitam discutir a desvinculação entre o salário mínimo e o piso da previdência social. Um dos efeitos colaterais, e inflacionários, do atrelamento do mínimo à inflação passada é o agravamento do rombo da previdência social. O déficit interessa a todos, afinal, é coberto pela sociedade por meio de tributos e de endividamento do Estado. Excesso de impostos e dívida produz inflação e juros altos.

As centrais também exigem a correção anual, com base na inflação passada, da tabela do Imposto de Renda (IR). O argumento é o de que, se os valores não são corrigidos, o trabalhador paga mais imposto. Essa alegação é verdadeira para os que têm reajuste salarial. Prevalece nessa discussão a ideia de "perda inflacionária", incompatível com uma economia estabilizada.

Ao trabalhador não deve interessar uma aceleração inflacionária, afinal, entre os vários grupos da sociedade, é um dos que mais sofrem com a perda de poder de compra da moeda - o que mais sai prejudicado é o desvalido, beneficiário de programas de transferência de renda, como o Bolsa Família, e que não tem representantes em Brasília. O trabalhador organizado em sindicatos, centrais e partidos políticos deveria lutar para evitar a indexação porque inflação gera mais inflação.

As centrais reclamam do IR, mas não querem discutir o caráter regressivo dos descontos da tabela de descontos. Nessa, ricos e pobres são tratados de maneira desigual. Se ambos desembolsam R$ 1.000 num procedimento médico, o Fisco devolve aos primeiros 27,5% da despesa e 15% ao segundo grupo; se o sujeito não é sequer contribuinte do IR, nada recebe de volta.

As centrais sindicais querem indexação, mas não aceitam discutir medidas para desonerar a folha de pessoal, elevar a poupança doméstica e diminuir o custo Brasil. Estas seriam iniciativas que reduziriam o custo de produção no país e, assim, aumentariam a capacidade produtiva da economia. Em última instância, ajudariam a aumentar a oferta de bens e produtos, diminuindo a pressão de demanda que hoje tanto impacta os índices de preços.

Centrais e entidades patronais, como CNI e Fiesp, se juntam, no entanto, para reclamar da taxa de juros. Analistas de mercado mais alinhados com a ala "desenvolvimentista" do governo, que acham inclusive que a inflação brasileira não é alta, e ministros influentes de Brasília reforçam esse coro, mas ninguém parece muito interessado em debater as razões dos juros altos e da inflação persistente. A crítica aos juros é a mais fácil, superficial e oportunista do debate brasileiro.

No campo simbólico, é mais simples acreditar que, a cada 45 dias, um bando de malvados se reúna no Banco Central para conspirar contra o desenvolvimento e para favorecer a banca privada. Difícil é discutir a extinção do mecanismo de indexação das cadernetas de poupança; o fim do Estado paternalista que capta impostos e contribuições parafiscais para sustentar sindicatos e associações de classe; a aposentadoria integral e a estabilidade no emprego dos funcionários públicos; os dois meses de férias remuneradas de juízes e procuradores; a manutenção, sob controle do Estado, de cinco bancos federais; a carga tributária mais alta do mundo em desenvolvimento, entre outros temas. Tudo isso tem, direta ou indiretamente, impacto sobre a inflação.

As elites - incluídos nessa categoria os sindicatos de trabalhadores mais fortes - sempre encontraram um jeito de se proteger da inflação. No passado, existiam a correção monetária e as contas remuneradas. Era como se, para alguns brasileiros, a inflação só existisse, e se existisse, a partir de um determinado patamar. Abaixo dali, todos perdiam e empobreciam sempre, um pouco a cada dia.

No longo prazo, todos perdemos com a inflação. Com preços fora de controle, cria-se uma névoa que prejudica o planejamento das empresas e do próprio governo. Investimentos são desestimulados e a sociedade vive num permanente vale-tudo que, ao fim e ao cabo, termina em estagnação, concentração de renda, pobreza, violência.

O passado recente, ainda muito vivo na memória da maioria dos brasileiros, deveria servir de alerta para aqueles que, agora, têm a obrigação de combater a inflação rediviva. "Nossas análises esquecem que tivemos, há menos de duas décadas, uma hiperinflação, que deixa marcas na reação dos agentes (indexação) quando a inflação sobe", adverte o professor Márcio Garcia, PUC do Rio.

De fato, o país padece de uma memória inflacionária. Com o fim da inflação crônica, a partir de meados de 1994, deveria prevalecer a cultura do nominalismo, mas no país só se fala em juros reais, salário real, etc. É como se a inflação fosse o alicerce irremovível da nação, um mal que não deve nem precisa ser debelado.