Título: Cobrança para garantir abastecimento é incipiente
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 22/03/2011, Especial Água, p. F2

De São Paulo

A cobrança pelo uso das águas para abastecimento, geração de energia, irrigação e outras aplicações econômicas vem se arrastando no país desde a edição da Lei das Águas, em 1997. Até o ano passado, o sistema estava institucionalizado em apenas três bacias de rios sob domínio da União e outras 16 estaduais, para um total de oito comitês de bacias interestaduais e 171 em âmbito estadual já existentes.

Essa cobrança resultou em uma arrecadação total de R$ 105,78 milhões em 2010. Analisado de forma isolada, o volume de recursos obtidos praticamente dobrou na comparação com 2009, quando a receita recolhida pela Agência Nacional de Águas (ANA) e distribuída aos comitês de bacia somou R$ 53,03 milhões. Embora pareça expressivo, o avanço é ainda tímido diante das necessidades. As bacias dos rios Paraíba do Sul, primeira a aplicar a cobrança, ainda em 2003, e Piracicaba, Capivari e Jundiaí - segunda a adotar a medida, em 2006 - receberam recursos correspondentes a 6% e quase 12% da demanda anual prevista em seus respectivos planos de bacia.

Ainda na esfera federal, detalha Giordano Bruno de Carvalho, especialista em recursos hídricos da ANA, a Bacia do Rio São Francisco passou a cobrar pelo uso da água em 2010 e há a perspectiva de início da cobrança na Bacia do Rio Doce no segundo semestre deste ano ou no início de 2012. "A grande virtude desse processo, que tem dado muito certo, é que ele ocorre de forma participativa e descentralizada, resultante de um pacto entre usuários, sociedade civil e poder público", declara Carvalho.

Embora ainda incipiente, a atribuição de valor à água, definido não só sobre os volumes captados, mas também sobre o lançamento de efluentes nos mananciais, conforme a carga de matéria orgânica despejada, tem contribuído para estimular o uso racional desse recurso, afirma o especialista.

No ano passado, diz Carvalho, registrou-se uma redução correspondente a 120 metros cúbicos por segundo nos volumes captados, via outorga, no Rio São Francisco, depois do início da cobrança, equivalente a quase duas vezes o consumo na região metropolitana de São Paulo. "Temos registrado economia em todas as bacias que fazem a cobrança, o que favorece o órgão gestor, que passa a ter volume adicional para novas outorgas", assinala. Carvalho acredita que há espaço para novos avanços, sem que isso represente um peso excessivo nas planilhas de custos do setor privado. Na verdade, atualmente, são cobrados valores baixos pela captação e pelo lançamento de resíduos. Na bacia do São Francisco, cita Carvalho, a título de exemplo, os preços fixados variam de R$ 0,01 a R$ 0,02 por m³, respectivamente na captação e no consumo, atingindo R$ 0,07 por quilo de matéria orgânica lançada.

Para acelerar esse processo, o pesquisador José Galizia Tundisi, presidente do Instituto Internacional de Ecologia de São Carlos e membro da Academia Brasileira de Ciências, defende apoio mais efetivo aos comitês de bacia e, principalmente, às agências de bacia, que funcionam como órgão executor das diretrizes traçadas pelos comitês, respondendo, entre outras funções, pela avaliação da demanda e da disponibilidade de água e pela identificação de pontos críticos. Segundo dados da ANA, estão instaladas no país seis agências, duas na esfera dos rios federais e quatro estaduais.

Ex-presidente da Light e atual membro do Conselho Curador da Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável (FBDS), José Luiz Alquéres propõe uma "mudança de paradigma" na gestão de recursos hídricos. Essa alteração pressupõe a criação de um sistema baseado em concessões por bacia ou sub-bacia hidrográfica, de forma integrada, abandonando-se o sistema atual de concessão por empreendimento.

As futuras concessionárias, que poderão ser tanto privadas quanto públicas, seriam escolhidas por meio de licitação e responderiam pela gestão integrada de toda a bacia ou sub-bacia, submetidas às agências reguladoras e às normas que regem cada setor. Essas "autoridades de bacia", num conceito que se aproxima das "authorities" americanas, segundo Alquéres, "teriam a possibilidade econômica de explorar o potencial hidrelétrico, autorizar e cobrar captações de água ou despejos, zelar pela qualidade das águas superficiais e dos aquíferos, pela preservação das encostas e redução do nível de sedimentos", assumindo também a responsabilidade de viabilizar o tratamento de efluentes e o papel hoje desempenhado pela defesa civil. As concessionárias, resume Alquéres, transformariam sua operação em um "negócio ambiental", com potencial para gerar um volume anual de receitas entre US$ 150 bilhões e US$ 200 bilhões, nos cálculos da FBDS.

Engenheiro eletricista com especialização em hidrologia e recursos hídricos, Marcos Correntino preside o Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Meia Ponte, principal fonte de abastecimento da região metropolitana de Goiânia. Criado há 14 anos e instalado de fato há quase oito, o comitê não conseguiu ainda aplicar a cobrança. "Para que isso aconteça, todos os instrumentos de gestão previstos na legislação devem estar funcionando, o que não aconteceu até o momento", afirma ele.

A bacia não dispõe ainda do seu plano de gestão de recursos hídricos, assim como não foi realizado o enquadramento dos corpos d"água em classes, segundo sua qualidade e usos preponderantes. Sem esse enquadramento, prossegue Correntino, não há como definir a carga de poluentes que cada curso pode receber, da mesma forma em que não há como estabelecer outorgas para lançamento de dejetos e muito menos a cobrança pelo despejo de efluentes. "O Estado não montou seu sistema de informação de recursos hídricos, não tem uma rede hidrológica em operação e, portanto, não conhece a real disponibilidade hídrica", arremata Correntino. (L.V.F.)