Título: Água que corre para o mar
Autor: Pena, Dilma
Fonte: Valor Econômico, 04/04/2011, Opinião, p. A10

O acesso à água e a serviços dignos de saneamento básico é direito fundamental do ser humano. Atendê-lo deve ser compromisso de todo e qualquer governante. Mas convivemos, no Brasil, com um inadmissível atraso nessa questão: no ritmo atual, levaremos mais 50 anos para universalizar o abastecimento de água, a coleta e o tratamento de esgoto. Trata-se de uma miséria clamando para ser erradicada. Por que não nos dedicarmos a enfrentá-la?

O problema é que há um enorme descompasso entre o desafio que a universalização dos serviços representa e as condições objetivas que o poder público fornece para alcançá-la. Ainda que os custos das obras de saneamento sejam altíssimos, o percurso tem sido mais acidentado do que deveria. Convivemos com estruturas de financiamento inadequadas, políticas obsoletas, marcos institucionais incompletos. As forças se anulam, quando é imperioso que se somem.

O setor de saneamento exige planejamento de longo prazo. Somente ações cumulativas, sucessivas e sem interrupções permitirão que o serviço se universalize entre nós. Sem esse continuum, a eficiência dos gastos fica comprometida e o recurso esvai-se pelo ralo. Em alguns casos, literalmente, como o das ineficiências que nos custam a perda de 40% da água produzida para consumo humano. Numa situação como essa, não surpreende que 36 milhões de brasileiros não tenham acesso à rede de água.

Se o desafio é gigantesco, os recursos orçamentários são absolutamente insuficientes. A responsabilidade constitucional pela prestação de serviços básicos de saneamento é municipal - no caso das regiões metropolitanas, ainda discute-se no STF se é municipal, estadual ou compartilhada. O governo federal não executa obras ou investimentos no setor.

Mas hoje são poucas as concessionárias públicas com condições de obter empréstimos para investir em saneamento - as de São Paulo, Minas e Paraná são algumas delas. A maior parte do setor é constituída por empresas mal estruturadas, mal administradas e endividadas que, por isso, não têm capacidade de acessar linhas de financiamento como as alimentadas com recursos do FAT e do FGTS.

Ordenar essa estrutura é fundamental para quaisquer avanços que se pretenda obter. Mas hoje inexiste uma política nacional integrada de saneamento. Sem capacidade para caminhar com as próprias pernas, quase todas as concessionárias do setor dependem da transferência de recursos a fundo perdido do Orçamento da União.

Os entes federados ficam, assim, sujeitos ao repasse esporádico, incerto, errático, de verbas resultantes de emendas parlamentares, à mercê da discricionariedade política. A consequência mais imediata é a ausência de uma racionalidade mínima para a liberação dos nossos já escassos recursos. Numa área em que tudo precisa estar integrado dentro de uma visão sistêmica, é desperdício na certa.

A execução orçamentária federal recente fornece exemplo cristalino das ineficiências decorrentes do modelo vigente. Nos últimos oito anos, a média anual de gastos da União em saneamento - incluindo desde serviços de água e esgoto propriamente ditos a drenagem e regularização urbana - foi de R$ 2,2 bilhões. Considerando que é necessário algo como R$ 250 bilhões para alcançarmos a universalização no país, resta evidente a distância entre a nossa realidade e os nossos desafios.

Isso torna ainda mais urgente a definição de uma política de financiamento que assegure e direcione recursos compatíveis com a realização integral das obras necessárias, sem fragmentá-las. Uma estratégia atrelada a critérios claros e objetivos de eficiência, que exija dos beneficiários bons projetos, boa gestão e boas práticas.

Neste campo, o Brasil tem muito a aprender com experiências internacionais. A União Europeia, por exemplo, exigiu de seus membros, de forma mandatória, o atendimento a padrões mínimos de cobertura de água e esgoto como parte do processo de integração continental. Um plano plurianual definiu estratégias e recursos para que, em cinco anos, as metas de coleta e tratamento fossem alcançadas. Já o Brasil ainda não dispõe sequer de um plano nacional de saneamento básico.

Nossa estrutura tributária também conspira contra o esforço da universalização. A lei de saneamento, de 2007, previa isenção tributária para investimentos no setor, mas tal dispositivo foi vetado. Para piorar, as alíquotas de PIS e Cofins cobradas pelos serviços prestados foram elevadas em 2003. Tudo considerado, R$ 2 bilhões que poderiam estar sendo aplicados por ano na universalização acabam sendo drenados: em vez de receber subsídios, como deveria, o setor de saneamento hoje financia o governo federal.

Frente a tantos problemas, não podemos ficar imobilizados. Há ações que já estão sendo feitas e que podem ser disseminadas por todo o país. Basta que as nossas políticas públicas passem a apontar numa direção comum, não divergente.

Cito duas delas: a redução das perdas de água em consequência de fraudes e vazamentos nas redes de abastecimento; e a produção de água de reuso para fins industriais e irrigação. Ambas já desenvolvidas em São Paulo - ações de combate aos desperdícios vêm, inclusive, sendo executadas em parceria com outras unidades da Federação, como Alagoas.

No estado de São Paulo, a universalização do atendimento de água e esgotamento sanitário vem sendo perseguida por meio de uma política perseverante e contínua, que perdura há mais de uma década. Já avançamos muito, mas os desafios são tantos que só alcançaremos nossa meta nos próximos dez anos.

Cuidar da água é cuidar da essência da vida, da natureza, do meio ambiente que nos cerca. Por isso, universalizar os serviços de saneamento básico, levando-os a todos os brasileiros, em todos os cantos do país, é, mais que um direito do cidadão, um dever de quem zela pelo interesse público. Para vencer esse desafio, a hora é agora, com todas as forças apontando numa única direção, como a água que corre para o mar.

Dilma Pena é diretora-presidente da Sabesp (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo). Foi secretária de Saneamento e Energia do Estado de São Paulo.