Título: Obituário prematuro da Rodada Doha
Autor: Bhagwat , Jagdish
Fonte: Valor Econômico, 29/04/2011, Opinião, p. A17

A Rodada Doha, primeira negociação comercial multilateral conduzida sob responsabilidade da Organização Mundial do Comércio (OMC), chegou a estágio crucial. Hoje, em seu décimo ano, com muito já negociado, as conversas precisam de um empurrão político final, para que Doha ¿ e, portanto, a OMC ¿ não desapareça nos radares mundiais.

O perigo, de fato, é real: quando estive em Genebra há um ano, hospedado no requintado Mandarin Oriental, perguntei ao porteiro se a OMC estava muito longe. Ele me olhou e perguntou: ¿A Organização Mundial do Comércio é uma agência de viagens?¿

Os principais estadistas têm consciência do risco de irrelevância e se comprometeram a colaborar. O primeiro-ministro britânico, David Cameron, a chanceler alemã, Angela Merkel, e o presidente indonésio, Susilo Bambang Yudhoyono, apoiaram de forma inequívoca a recomendação do Grupo de Especialistas de Alto Nível em Comércio, copresidido por mim e Peter Sutherland, de que devemos abandonar a Rodada Doha se ela não for concluída até o fim do ano.

Nossa ideia é que, da mesma forma como a perspectiva de um enforcamento iminente concentra as atenções, o prazo e a perspectiva de morte da Rodada de Doha galvanizem os estadistas mundiais para completar o último quilômetro de uma maratona. (A analogia é ainda mais apropriada, pois o diretor-gerente da OMC, Pascal Lamy, que brilhantemente manteve o processo em andamento, é maratonista).

Mas mesmo com esses esforços ganhando força, o ¿Financial Times¿, que costumava ser defensor incondicional do livre comércio internacional, lançou uma bomba de fragmentação sobre a Rodada de Doha e ainda se congratulou por, em 2008, (quando um encontro ministerial não conseguiu chegar a conclusões), ter ¿argumentado que os líderes deveriam admitir que as negociações estavam mortas¿. Como os céticos parecem ter se esquecido da famosa resposta de Mark Twain a seu obituário equivocado (¿As notícias de minha morte são demasiado exageradas¿), então, os negociantes que continuaram trabalhando desde então o que seriam? Algo parecido às ¿almas mortas¿ de Gógol?

Os excessos são típicos do que acontece em acordos de comércio preferencial liderados por potências hegemônicas. O perigo é que esses excessos levem países emergentes a presumir que tal abertura representa pouco além de neocolonialismo.

O ¿Financial Times¿ recomenda elaborar um plano B, aqui e agora, o que sabotaria os esforços políticos para concluir a Rodada. Apesar dos clichês retóricos sobre a necessidade de que os ¿ministros se esqueçam de hábitos arraigados e se concentrem na substância, não na retórica¿ e sobre ¿associações comerciais comprometidas com os detalhes do que as empresas desejam¿, esse plano B proposto fortaleceria as iniciativas de comércio bilaterais e regionais, que vêm desviando a atenção e energia para longe de Doha e da OMC. A ironia é que a proliferação de tais acordos de comércio preferencial (ACPs) normalmente é justificada pela falta de progresso em concluir as negociações da Rodada Doha. Nunca a ¿causa e efeito¿ foi tão dramaticamente revertida em argumentos sobre políticas de comércio exterior.

Torna-se cada vez mais óbvio que tais ACPs são o que chamo de ¿cupins no sistema comercial¿. De fato, crescem as evidências de que estimulam distrações comerciais nocivas, ao aumentar a discriminação contra os não integrantes do acordo. Portanto, o recente trabalho dos economistas Tom Prusa e Robert Teh traz evidências convincentes de que os pedidos antidumping diminuem de 33% a 55% dentro de um ACP, enquanto aumentam entre 10% e 30% contra os não membros do acordo.

Ainda mais importante, os ACPs são usados pelas potências hegemônicas para impingir aos sócios comerciais mais fracos exigências não relacionadas ao comércio, mas desejadas por seus lobbies domésticos, às vezes de forma marcadamente assimétrica. Dessa forma, o Peru viu suas leis trabalhistas serem praticamente reescritas pelos parlamentares dos Estados Unidos, em dívida com os sindicatos americanos, antes da conclusão do ACP entre os dois países.

Da mesma forma, Claude Barfield documentou como a Colômbia foi intimidada a tornar crime (com sentenças de prisão de até cinco anos) o envolvimento com atos que ¿corroam o direito de organizar-se e negociar coletivamente¿. A Colômbia também terá de aprovar lei determinando o período de prisão para os que ¿oferecerem um pacto coletivo a trabalhadores não sindicalizados que tenha condições melhores que as de trabalhadores sindicalizados¿. Será que o governo dos EUA começará a apresentar acusações criminais contra o governador de Wisconsin e muitos outros líderes republicanos que fazem exatamente o que o governo colombiano está sendo intimidado a não fazer?

Tais excessos são típicos do que acontece em ACPs liderados por potências hegemônicas, diferentemente da OMC, na qual países fortes como a Índia (que pediu à União Europeia para tirar todas as medidas não relacionadas ao comércio do ACP proposto) e o Brasil não podem ser tão intimidados. O perigo é que os excessos levem a sociedade civil e os eleitores de países em desenvolvimento democráticos a reagir contra manifestações de força hegemônica em causa própria, passando a opor-se ao próprio livre comércio e a presumir que tal abertura representa pouco além de neocolonialismo.

Jagdish Bhagwati é professor de economia e direito na Columbia University e membro associado em questões de economia internacional do Conselho de Relações Exteriores. É autor de ¿Termites in the Trading System: How Preferential Trade Agreements Undermine Free Trade¿ (Cupins no sistema de comércio: como acordos de comércio preferencial comprometem o livre comércio, em inglês) ¿ Oxford, 2009. Copyright: Project Syndicate, 2011. Podcast no link: http://media.blubrry.com/ps/media.libsyn.com/media/ps/bhagwati12.mp3