Título: O desafio da desindexação além dos preços e salários
Autor: Megale, Caio
Fonte: Valor Econômico, 23/05/2011, Opinião, p. A8

No dia 29 de abril, Claudia Safatle trouxe em sua coluna no Valor a informação de que o governo prepara uma proposta ambiciosa de desindexação da economia brasileira, "que vai além dos contratos atrelados a índices de preço". A iniciativa é muito bem-vinda. Essa é uma das mais complicadas heranças do período da hiperinflação, que torna o processo de combate à inflação no Brasil mais penoso.

A disseminação da prática da indexação tem suas raízes nas décadas de 1960 e 1970, como resposta ao crescente quadro inflacionário que começava a atrapalhar o desenvolvimento da economia brasileira. Entre 1968 e 1973, por exemplo, a inflação rodava ao redor de 20% ao ano, e era vista como uma consequência indesejada, porém natural, da escolha por um crescimento mais acelerado. Para minimizar os efeitos deletérios da alta de preços, foram desenvolvidos mecanismos de indexação de preços e salários, o que supostamente deixaria a inflação um processo indolor uma vez que tudo subiria na mesma proporção e ao mesmo tempo. Como avaliava à época o economista Mario Henrique Simonsen, a indexação levava a inflação a um estado de "quase neutralidade", embora o mesmo Simonsen fizesse a crucial ressalva de que a convivência pacífica com a inflação tornaria elevado o coeficiente de realimentação inflacionária. (Simonsen, M. H. "Brasil 2002", 1975).

De fato, a indexação acabou sendo a semente da escalada hiperinflacionária dos anos 80. Como apontou Gustavo Franco, economista da geração seguinte à de Simonsen e que fez parte da equipe cuja missão principal era eliminar a inflação herdada das décadas anteriores, "a indexação mostrou-se não apenas o combustível para o processo hiper-inflacionário, como também o principal obstáculo na luta para debelá-lo". (Franco, G. "O Auge e o Declínio do Inflacionismo no Brasil", 1999)

A indexação é a principal razão pela qual a inflação no Brasil, ainda hoje, é uma das mais inerciais do mundo. Uma série de serviços da economia é reajustada não pela avaliação de custos e perspectiva futura de demanda, mas simplesmente aplicando a inflação passada. O caso mais notório é o dos aluguéis, cujo reajuste é automático por contrato. E usualmente parametrizado pelo IGP-M, um índice muito poluído pelo movimento da taxa de câmbio e dos preços internacionais das commodities, fatores muito pouco relacionados ao serviço de aluguel. Mas outros serviços como clubes sociais, barbeiros, escolas, mesmo informalmente, também acabam se baseando na inflação passada para seus reajustes anuais (ou, às vezes, trimestrais!). Serviços públicos também são balizados pela inflação passada, embora esforços recentes tenham conseguido reduzir essa correlação.

O alto grau de inércia da inflação acaba prejudicando processos de desinflação como o atual, tornando mais complicado o trabalho do Banco Central. Em geral, se a formação de preços e salários dos agentes se baseia muito no passado, a inflação corrente elevada acaba sendo mais persistente e, portanto, o BC acaba tendo que subir mais juros para reduzir a inflação do que teria se os agentes olhassem para frente. E, consequentemente, a taxa de sacrifício exigida da sociedade - medida em termos de menos renda e mais desemprego - acaba sendo maior. É por isso que esse debate de como desindexar a economia recrudesce nesta fase do ciclo econômico.

Mas, como muito bem apontou a mencionada coluna de Claudia Safatle, a desindexação deve ir além dos preços e salários. É importante também mirar a desindexação financeira, a chamada "cultura do CDI".

Essa é outra herança do período de inflação alta. A cultura do investidor no Brasil é de avaliar seus investimentos financeiros como proporção do CDI (a taxa de juros overnight), em vez de pensar no retorno absoluto do investimento. Ou seja, o investidor não quer saber se a aplicação lhe renderá 5%, 10% ou 15% ao ano, mas sim se o rendimento será de 90, 120 ou 160% do CDI do período. Dessa forma, o governo é levado a prover títulos indexados ao mercado (também chamados de pós-fixados). E bancos, para financiar suas atividades de crédito, também precisam lançar mão de CDBs pós-fixados e letras de crédito indexadas à taxa de juros.

Essa prática também acaba tornando a política monetária menos eficiente, pois a alta de juros gera um efeito renda aos detentores dos instrumentos pós-fixados que reduz o impacto do aperto monetário sobre a demanda agregada. E mais custosa também em termos fiscais, pois eleva além do usual o pagamento de juros da dívida pública.

Para resumir o dito até aqui, tanto a indexação de preços e salários à inflação passada, como a indexação financeira ao CDI, são práticas ainda muito comuns no país, apesar dos quase 17 anos de inflação relativamente baixa. E ambos são fatores que tornam menos eficientes e mais custosas a ação da política monetária.

Como dito, não é por outra razão que o debate aparece exatamente nos momentos como o atual, de altas de juros. Mas a discussão deveria ocorrer também quando a inflação cede, e os juros começam a cair. Da mesma forma que a inércia atrapalha quando a inflação está subindo, ela ajuda quando a inflação está baixa. Na mesma linha, quando os juros estão caindo, há um incentivo a aumentar a parcela indexada da dívida, pois esta tende a ficar menos custosa à frente. Manter a discussão acesa quando a conjuntura melhora evitaria que a batalha contra a indexação se arrastasse por tantos anos sem avanços expressivos.

Isso porque é justamente neste momento favorável que os agentes privados estão mais suscetíveis a aceitar, de forma mais natural, as medidas de desindexação, pois lhe parecerá menos custosa.

Em suma, uma agenda para desindexar a economia é - mais que bem-vinda - fundamental para a consolidação da estabilidade econômica do país. Mas ela deve ser buscada de maneira natural ao longo dos anos, em momentos de alta e de baixa da inflação. Precisamos ter isso em mente, para conseguir debelar essa deletéria prática herdada do passado.

Caio Megale mestre em economia pela PUC-RJ, é economista do Itau-Unibanco