Título: Infância ameaçada
Autor: Cristovam Buarque
Fonte: Valor Econômico, 13/12/2004, Opinião, p. A-10

O fim da Segunda Guerra Mundial provocou a criação de diversos organismos internacionais -FMI, OMC , BIRD - para organizar a economia mundial e promover o desenvolvimento dos países. São eles que vêm ditando os rumos do mundo em que vivemos. Ao lado deles, foram criadas entidades para apoiar os setores esquecidos, como cultura, educação, infância. Passados tantos anos, o resultado é um mundo dividido, onde a economia cresce, mas a riqueza não se distribui. Um mundo injusto, onde metade dos 2,2 bilhões de crianças vive na pobreza. Um mundo desigual, no qual morrem, antes de completar 5 anos, 5 mil crianças do Japão, que tem 127 milhões de habitantes, e 82 mil crianças da Zâmbia, que tem população de pouco mais de 10 milhões. Desigualdade que atravessa toda a infância, na alimentação, na educação, na saúde, nas oportunidades, como se essas crianças vivessem em mundos diferentes. Um mundo no qual, enquanto você lê este artigo, morrerão 120 crianças com menos de cinco anos de idade, por causas que poderiam ser evitadas. Essa trágica realidade que enfrentam as crianças em pleno século XXI seria completamente distinta, se, da mesma forma que obedece ao ideário das organizações econômicas, o mundo adotasse com seriedade as orientações Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). A cada ano, seu relatório anual denuncia as injustiças, o abandono e a insensatez que comprometem seriamente a vida de bilhões de crianças em todo o planeta, e divulga medidas que têm sido adotadas, com êxito, para corrigir essa situação. Na quinta-feira passada, o Unicef lançou o relatório "Situação Mundial da Infância 2005", com o expressivo título de "Infância ameaçada". Ele detalha a pobreza e a privação que afetam brutalmente a infância em todo o mundo, e as ações que mais se destacaram para combatê-las. Entre elas, é citada a Bolsa-Escola. Traz também uma apurada descrição de um programa similar adotado no México, inspirado pelo modelo brasileiro, e que recebe o nome de Programa Oportunidades. O Unicef mostra que, se programas desse tipo fossem executados em todo o mundo, seria possível criar um sistema de renda que ajudaria as famílias em situação mais vulnerável e, sobretudo, garantir o acesso universal à educação, mesmo às crianças mais pobres. E que este é o caminho da mudança na situação da infância mundial: educar as crianças de hoje para mudar a vida de seus filhos, as crianças de amanhã.

A infância brasileira não estará protegida enquanto for assunto municipal. A educação básica precisa ser federal

Nascido no Brasil, o Oportunidades, antes chamado Progresa, ocupa, merecidamente, espaço de destaque no relatório. O governo mexicano tomou várias medidas para garantir a eficácia do programa: paga às famílias um benefício satisfatório, conta com um eficiente sistema de controle da freqüência e promove o fortalecimento das mães beneficiárias, fornecendo-lhes orientação e estímulo para que participem ativamente da educação de seus filhos. Além disso, investiu na melhoria da qualidade da educação. Por tudo isso, o México estará, em poucos anos, em posição superior à brasileira no que se refere aos cuidados com a infância, e será um exemplo que o Unicef poderá levar para o resto do mundo. Nós, brasileiros, sobretudo aqueles em posição de liderança, deveríamos ler com mais cuidado os trabalhos do Unicef. Este ano, o relatório mostra que o Brasil piorou sua posição no mundo, no que se refere aos cuidados com suas crianças. Em um ano, caímos três posições na classificação por mortalidade de menores de cinco anos. Estamos atrás de Bósnia e Herzegovina, Colômbia e dos Territórios Palestinos. Países que enfrentam ou enfrentaram guerras, terror, e com renda muito inferior à brasileira. Uma classificação como essa só se explica, porque, apesar das dificuldades nos últimos anos, somos um exemplo de êxito na economia e de fracasso no social. Continuamos defendendo a mentirosa ilusão de que o crescimento econômico distribui renda e chega às crianças pobres. E seguimos comemorando as melhorias em nossos indicadores, sem comparar nossos resultados com o que se passa nos outros países. O relatório do Unicef mostra que a situação da infância no Brasil melhorou, mas menos do que no resto do mundo. O mesmo se passa com a educação básica: avança, mas a uma velocidade menor do que nos demais países. Estamos ficando para trás. Para atender às necessidades das nossas crianças, precisamos de políticas públicas específicas, dirigidas à infância. Como, por exemplo, um programa eficiente de bolsa-escola, que o Brasil inventou e o Unicef recomenda, e um programa de federalização da educação básica. A infância brasileira não estará protegida enquanto continuar sendo assunto municipal. A educação básica precisa ser federal, para que sejam definidos padrões mínimos para a educação das nossas crianças, não importa em que cidade elas vivam. Para que sejam estabelecidos pisos para o salário e a formação de cada professor, parâmetros mínimos para edificações e equipamentos pedagógicos de cada escola, e para o conhecimento adquirido por cada criança em cada série do ensino básico. Para isso, seria preciso muito pouco: algumas leis e alguns recursos a mais no Orçamento federal. Não o fazemos por miopia. Se, nos últimos 50 anos, tivéssemos dado mais atenção às recomendações do Unicef, como demos aos organismos econômicos, nossa realidade social seria completamente diferente. Como todos os anos, esse relatório é um grito de denúncia e, ao mesmo tempo, de esperança. Aponta o futuro comprometido, mas nos lembra que na infância está a base da mudança. Os organismos econômicos disseminaram a idéia de que a raiz da desigualdade está na diferença da renda dos adultos. O Unicef nos mostra que o berço da desigualdade está na desigualdade do berço. E que é na infância que se constrói a igualdade.