Título: Na corrida contra o tempo
Autor: Mariz, Renata
Fonte: Correio Braziliense, 14/09/2010, Brasil, p. 9

As cirurgias de retirada e implantação de órgãos não dão espaço para o erro. Além da habilidade da equipe, a sincronia precisa ser perfeita, porque em alguns casos seis horas é o prazo máximo para que se tenha sucesso

A impossibilidade de comprar um fígado de uma indústria bioquímica ou importar um pulmão de alguma multinacional torna as cirurgias de transplante de órgãos procedimentos extremamente únicos e delicados para os profissionais de saúde. No caso do coração, se der errado, não tem outra alternativa para a equipe que está executando a operação. Acabou, compara Fernando Atik, cirurgião do Instituto de Cardiologia do Distrito Federal.

Entre a captação dos órgãos do doador e a implantação no paciente que depende daquela cirurgia para viver, é preciso contar com o esforço e a competência de gente comprometida com o assunto das comissões que abordam os familiares aos médicos que cuidam do pós-operatório, passando por enfermeiros, técnicos, assistentes sociais e psicólogos. São 3.663 profissionais habilitados no Brasil para trabalhar na área, 30% deles concentrados em São Paulo. Agilidade é um dos requisitos básicos para o sucesso.

Algumas etapas são mais demoradas. Às vezes, o médico não suspeita logo da morte encefálica. Ou os familiares decidem pela doação muito tarde, quando já houve a parada cardíaca, conta Daniela Salomão, que coordena a Central de Transplantes do Distrito Federal, gerenciando uma equipe de menos de 10 pessoas para iniciar o protocolo da captação dos órgãos em qualquer unidade de atendimento da cidade. Com exceção de córneas, rins e ossos, que podem ser conservados fora do corpo por um período maior, nenhum outro órgão resiste por mais de 20 horas. No caso de fígado, por exemplo, o limite é 18 horas e do pulmão, oito horas. Seis horas é o tempo máximo para tirar o coração de uma pessoa e fazer com que comece a bater em outra, afirma Atik.

Momento, aliás, de maior tensão dentro da sala de cirurgia. Vamos diminuindo a máquina que mantém o paciente vivo e esperando o coração bater. É aí que você vai ver se deu certo, explica o médico. Segundo Atik, nos 14 procedimentos de transplante dos quais participou em Brasília, nenhum paciente morreu durante a operação. Isso se deve ao casamento quase ideal que tentamos fazer entre o doador e o receptor, com exames detalhados de compatibilidade, antes de iniciar a cirurgia, conta. Um cuidado que muitas vezes se transforma em frustração quando, por algum fator, o transplante é suspenso. Nesse momento, precisamos ser um pouco psicólogos também, porque eles chegam com toda a expectativa, afirma o cirurgião.

Ao lidar com uma matéria-prima tão imprevisível, os chamados no meio da noite fazem parte da rotina dos profissionais. Engraçado que é sempre de madrugada, brinca Atik. O coordenador de transplantes de rins do Hospital de Base de Brasília, Flávio Guimarães, já perdeu uma festa de réveillon na própria casa por conta de uma cirurgia. Foi de 1997 para 1998. Ainda consegui cumprimentar as pessoas e fui para o atendimento. Fizemos o transplante por volta de uma da manhã, lembra o médico, que realiza o procedimento há 15 anos.

Retirada, momento difícil

Uma diferença emocional no trabalho com transplantes, em relação a outras cirurgias, está na etapa de captação dos órgãos, na avaliação de Flávio Guimarães. Coordenador de transplantes renais do Hospital de Base, ele conta que é comum os médicos residentes sentirem-se incomodados ao executarem a retirada. A pessoa está ali, respirando com a ajuda dos aparelhos. Mesmo sabendo que ela não volta, que acima do tronco cerebral não existe atividade alguma, é estranho porque você termina de captar e manda desligar os aparelhos, afirma Guimarães.

Segundo o coordenador, mesmo cirurgiões experientes sentem o tal mal-estar quando o doador é uma criança. Até porque a maioria tem filhos. Então fica todo mundo calado, não tem clima nem para conversar dentro da sala, diz Guimarães. A tensão pode ser ainda maior no caso de doador vivo. Em todos os serviços que já trabalhei, é sempre o cirurgião mais experiente que faz a retirada nessa situação porque você está lidando com uma pessoa totalmente saudável, que está ali por um gesto de amor. Nada pode dar errado, afirma o médico com 15 anos de experiência na área.

Apesar do engajamento dos profissionais, é consenso entre a categoria e o próprio Ministério da Saúde que um trabalho mais sintonizado, com a ampliação de equipes em todas as unidades da Federação, daria resultados melhores. O Distrito Federal, por exemplo, não utiliza órgãos de outros estados por conta da ausência de equipes para fazer o transporte. Quadro bem diferente do vivenciado pelo cirurgião Fernando Atik nos quatro anos de trabalho em Cleveland, no estado de Ohio (EUA). Havia um avião que nos levava para a captação num raio de duas horas de voo, com ambulância que nos pegava na porta da aeronave e nos levava, escoltada, até o hospital, conta.

Mesmo com uma realidade bem diferente, o governo federal ressalta que a taxa de aproveitamento das doações no país chega a 92%, uma vez que, das 963 pessoas falecidas cujos familiares autorizaram a retirada, 890 tiveram os órgãos implantados. No entanto, gargalos na oferta do serviço são visíveis até no Distrito Federal, terceiro no ranking de doadores. Aqui, não se faz transplantes de fígado, medula óssea ou pulmão. A fila de espera por um coração é de um ano e meio, enquanto a de rins chega a quatro. (RM)

"É estranho porque você termina de captar e manda desligar os aparelhos

Flávio Guimarães, coordenador de transplantes renais do Hospital de Base