Título: Na aldeia, cacique usa celular e as crianças têm computador
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 26/12/2011, Brasil, p. A4

A migração do índios guaranis rumo ao leste, desde as terras paraguaias, de onde são naturais, era uma marcha em busca da "terra sem mal", segundo a história da tribo. A andança os levou à capital paulista, onde encontraram o desenvolvimento urbano no início do século XX. A aldeia da Barragem, com 26 hectares de extensão, onde vivem cerca de 130 famílias de guaranis mbya, fica em Parelheiros, bairro da zona Sul de São Paulo. O local era parada dos indígenas que iam para o litoral, até que alguns se fixaram, e a região foi reconhecida como terra indígena na década de 80.

A vida dos guaranis mbya em São Paulo já possui muitas influências do "homem branco". Eles se vestem com jeans e camisetas, o cacique usa celular - apesar do sinal na aldeia ser ruim - e as crianças gostam de tomar refrigerante. Eles mantêm, no entanto, sua língua, apesar de aprenderem o português na escola, sua religião, sua organização comunitária e e tentam perpetuar seus conhecimentos no trato com a natureza.

"Os mais velhos soltavam a criança no meio do mato para ela aprender a sair sozinha. Meu avô também me ensinava como caçar queixadas [tipo de porco do mato]. Ele assobiava e conseguia fazer com que as outras queixadas fossem embora e deixassem livre a que foi flechada", diz o cacique Timóteo Popygua.

A organização comunitária, onde as famílias compartilham o que precisam e as casas ficam abertas, acaba sendo ameaçada pelo movimento da cidade. "Com o crescimento populacional, começou a ter assaltos para levar televisor, aumentou a violência", diz Popygua.

Um telecentro foi inaugurado recentemente, com 20 computadores, e as crianças reclamam que ainda não têm internet. O cacique diz que o ensino formal e a tecnologia não ameaçam a cultura guarani. "Hoje temos jovens fazendo faculdade, estudando, mas a intenção é que ele se forme e volte, para que possa trazer o conhecimento para a comunidade."

O fator essencial para manter a tradição do povo indígena, segundo o cacique, é a terra. "Durante 500 anos tivemos dificuldade para manter nossa cultura. A compra de novas terras pela Dersa vai ajudar a manter a nossa cultura." Segundo ele, a terra que eles vão adquirir no Vale do Ribeira deve servir para fornecer produtos agrícolas para os que continuarem na Barragem.

Paulo Karai, 26 anos, chegou na Barragem aos sete anos. Nascido numa aldeia em Itanhaém, litoral paulista, se mudou para São Paulo depois que seu pai faleceu. "Ainda não existia essa estrutura toda, o centro de saúde, as escolas, as casas da CDHU [Companhia Desenvolvimento Habitacional e Urbano]. As casas eram todas de sapê", diz.

As moradias da CDHU foram construídas há quatro anos e seguem um modelo que atende aos costumes indígenas, como ter fogão a lenha. Elas substituíram as casas de pau a pique e sapé, porque, segundo Karai, como o espaço da aldeia está reduzido, ficava difícil fazer a manutenção das casas antigas e construir novas. "Falta matéria-prima para fazer as casas."

Karai trabalha como vigia no centro de educação e diz que gosta muito de viver ali. Uma das principais atividades da tribo são as reuniões que ocorrem diariamente na casa de reza, onde os índios dançam e cultivam suas crenças.

Karai diz que se incomoda com o crescimento urbano. "Muita gente entra, atrapalha, fica olhando. Quando a Dersa começou a falar do Rodoanel, a comunidade se reuniu para discutir se podiam não fazer a obra, ou então fazer mais longe. Eles falam que não, mas as obras sempre causam problemas para a gente", diz.

Segundo Popygua, há pouco espaço para a prática da caça. "A gente vive da caça e da pesca controlada, somente o pajé autoriza a caça e a extração. O homem branco vem e pega tudo. Os ruídos da cidade também afastam os animais", diz.

Maria Pires de Lima, 38 anos, vive da venda de artesanato quando há visitas na aldeia. No fundo da casa, planta palmito e mandioca. Conta que a terra já não dá muita coisa. O que falta é comprado numa vila próxima. "A terra aqui está ruim, é difícil", diz. A índia nasceu na Barragem e lembra que na infância a região tinha mais mata fechada e menos carro circulando.

"Eu gosto de fazer a minha comida, as pessoas acham a minha comida gostosa. Gosto de fazer meu artesanato, cuidar da minha casa. Essa terra é nossa, a gente não devia ter que sofrer tanto para garantir o que é nosso direito", diz Maria.

O cacique é hoje o representante da comunidade. É Popygua quem acompanha os projetos de lei que afetam a vida dos indígenas e viaja constantemente para participar de encontros com outras tribos. "Estou sempre viajando, indo para Brasília e para outros Estados discutir os problemas dos povos indígenas", conta. (SM)