Título: Arrasado, Haiti tenta convencer empresas a investir no país
Autor: Ribeiro,Alex
Fonte: Valor Econômico, 01/12/2011, Especial, p. A16

Quase dois anos depois do terremoto que devastou a capital do Haiti, o palácio presidencial ainda está em escombros, há muito entulho pelas ruas e 600 mil desabrigados vivem em barracas. Ainda assim, o país mais pobre das Américas se prepara para o seu passo mais ousado: convencer o mundo de que está reaberto para negócios e que, a despeito do longo histórico de conflitos políticos e sociais, pode ser uma economia viável.

Nos últimos dois dias, mais de mil empresários, investidores e outros interessados na recuperação do país, incluindo celebridades como o ator de Hollywood Sean Penn, discutiram oportunidades de negócio num fórum organizado no único hotel de Porto Princípe à altura da ocasião.

Carros de golfe apanharam os visitantes na pista do aeroporto e funcionários abriram o caminho na imigração. Helicópteros levaram investidores ao norte do país para assistir ao lançamento de um novo parque industrial. O presidente da República e ministros ficaram acessíveis para falar com os potenciais investidores. "Achei que ia encontrar pessoas arrasadas pela tragédia", disse o empresário Wilson Quintella Filho, da Estre, uma empresa brasileira de gerenciamento de resíduos. "Eles estão com a cabeça erguida."

O grande atrativo do Haiti é a isenção de tarifas de importação concedida pelos Estados Unidos para vestuário. A ideia é criar uma plataforma exportadora para aproveitar a mão de mão de obra barata do país. Uma empresa coreana será a primeira a se instalar em um novo complexo industrial. Grandes companhias, como as brasileiras Coteminas e Vicunha, estão em contatos preliminares, assim como outras empresas de menor porte. Doadores internacionais e organismos multilaterais sinalizam com investimentos para apoiar negócios privados em turismo, agricultura e infraestrutura.

A promessa de bons lucros, porém, vem acompanhada com uma dose de risco. Levou quase meio ano para um parlamento profundamente dividido aprovar um novo gabinete. O novo presidente, Michel Martelly, um cantor conhecido pelo apelido de "Doce Mickey", venceu as eleições prometendo recriar o Exército, revivendo a memória de golpes de Estado no país.

"Para criar estabilidade de longo prazo no Haiti, é preciso ter uma força que substitua a força das Nações Unidas quando ela expirar", disse ao Valor o ministro das Relações Exteriores do Haiti, Laurent Lamothe. "Os empresários brasileiros e americanos que vêm aos Haiti fazer negócios querem se sentir seguros."

Do lado econômico, ainda há muita dúvida se o modelo exportador baseado na mão de obra barata, que já foi tentado no passado, desta vez vai tirar o país da pobreza extrema. O setor de vestuário paga um salário mínimo de US$ 3,50 por dia, ainda menor do que os já baixos US$ 5 diários vigentes para o resto da economia. O Haiti chegou a ser um grande exportador de roupas, mas a produção caiu no começo da década de 1990 depois que os Estados Unidos impuseram um embargo comercial em repressão ao golpe de Estado que depôs o então presidente de esquerda, Jean-Bertrand Aristide.

O principal arquiteto do novo modelo econômico do Haiti é o ex-presidente americano Bill Clinton, que em 1975 passou a sua lua de mel no país e hoje é visto como autoridade de fato. "Em 4 de dezembro, vai fazer 36 anos que estivemos pela primeira vez ao Haiti", disse ele nesta semana, em tom nostálgico, numa cerimônia em que foi anunciada a construção de um hotel de US$ 45 milhões a ser gerido pelo Marriott. "Ainda me lembro dos pequenos hotéis de Porto Príncipe."

Clinton patrocinou um fórum de negócios semelhante em 2009, mas o terremoto que matou cerca de 300 mil pessoas no ano seguinte colocou os projetos na estaca zero. Desde então, o Congresso americano ampliou ainda mais as vantagens comerciais ao Haiti. Neste ano, o volume exportado deverá crescer 50%, chegando a US$ 500 milhões. Ainda assim, o Haiti só estará cumprindo cerca de 5% da quota de exportações aos Estados Unidos. "O Haiti tem com os Estados Unidos o acordo comercial mais vantajoso do mundo", disse ao Valor Luis Alberto Moreno, presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), organismo que irá investir US$ 100 milhões na construção de galpões e infraestrutura no novo parque industrial localizado no norte do país, numa região conhecida como Caracol.

A coreana Sae-A Trading, que fornece roupas para varejistas como o Wal-Mart, a Target e a Gap, será a primeira empresa a se instalar em Caracol, com um investimento de US$ 85 milhões. "A primeira vez que viemos ao Haiti foi 1994", disse ao Valor o presidente mundial da Sae-A Trading, Wooungki Kim, que opera em países como Nicarágua, China e Vietnã. "Quando voltamos à Coreia para encaminhar as coisas, o governo mudou", disse, referindo-se à volta de Aristide ao poder.

Desde então, uma sequência de tragédias manteve a Sae-A longe do país, incluindo conflitos nas ruas, furacões, terremoto e, mais recentemente, uma epidemia de cólera que matou 6 mil pessoas. A empresa só voltou a considerar o Haiti depois de negociações que envolveram dinheiro e a diplomacia dos Estados Unidos, além do BID. "Eles derrubaram todos os obstáculos ao investimento."

Os americanos se comprometeram a construir uma usina elétrica exclusivamente para o complexo industrial. O Haiti sofre apagões frequentes e, de noite, as ruas de Porto Príncipe são uma escuridão. Os Estados Unidos também vão levantar 5.000 casas no entorno do empreendimento para evitar a favelização.

Caracol foi escolhida como sede do parque industrial para evitar os erros do passado, em que programas de desenvolvimentos semelhantes na capital atraíram massas de imigrantes do campo. Vista do céu, a paisagem urbana de Porto Príncipe é dominada por favelas e por milhares de casas com telhados destruídos pelo terremoto.

Hoje, cerca de 75% da população do Haiti vive com menos de US$ 2 por dia, e a dúvida é se, em meio à tanta pobreza, é possivel criar negócios voltados para o mercado interno. Com 10 milhões de habitantes, seu PIB de US$ 6,7 bilhões é maior apenas que os dos Estados do Acre, Amapá e Roraima.

A grande história de sucesso no passado recente é a operadora de celulares Digicel, de propriedade do bilionário irlandês Denis O"Brien, hoje uma das instituições mais populares entre o povo haitiano, ao lado da seleção brasileira de futebol. Há cinco anos, a principal operadora de celular no país tinha uma base de apenas 500 mil assinantes, apostando na venda de aparelhos caros e cobrança de altas tarifas da pequena elite que controla o poder econômico no Haiti há mais de 200 anos, desde que os escravos conquistaram a independência com uma revolução contra os colonizadores franceses.

"Andando de taxi, vi muita gente comprando e vendo coisas nas ruas, mas ninguém tinha celular", disse O"Brien ao Valor, explicando como decidiu investir US$ 160 milhões no país. Hoje, a Digicel tem 3,7 milhões de clientes, e cerca de 25% de sua receita vêm de telefonemas de haitianos que imigraram para países como o Canadá e os Estados Unidos. A cobertura chega a 86% da população, com uma rede de antenas alimentada por pequenos geradores de energia, para garantir continuidade dos serviços nos apagões. Em cada torre, há vigias para evitar furtos.

A Digicel aumentou o seu faturamento, hoje da ordem de US$ 400 milhões, mesmo no ano do terremoto, quando o PIB do país caiu 5,4%. A empresa foi favorecida por cerca de US$ 2 bilhões em ajuda humanitária, sobretudo alimentos, que entraram no país e abriram espaço no orçamento dos haitianos para gastar em serviços de telecomunicação.

"Esse dinheiro foi muito importante para estimular o consumo", afirmou ao Valor Gregory Mevs, da Win Group, empresa que atua em setores como distribuição de petróleo e transporte marítimo. "Agora, é preciso investimentos."

Nova geração de uma tradicional família de negócios, Mevs circula em Porto Príncipe em carro blindado e recebeu a reportagem do Valor numa tarde de domingo em sua casa na praia. "Hoje, a violência urbana no Haiti é mais um problema de percepção do que realidade", afirmou. "Com a ajuda das tropas brasileiras que estão aqui, nossa taxa de homicídios caiu para bem abaixo de outros países da América Latina e do Caribe." Hoje, são sete homicídios por cada 100 mil habitantes, segundo dados das Nações Unidas, ante 23 no Brasil e 25 na vizinha do Haiti na ilha de Hispaniola, a República Dominicana.

O repórter viajou a convite do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID)