Título: Juro dificulta emissão do BID em reais, diz Levy
Autor: Safatle, Cláudia e Romero, Juliano
Fonte: Valor Econômico, 29/08/2006, Especial, p. A16

Joaquim Levy, vice-presidente de Finanças e Administração do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), disse, em entrevista ao Valor, que as taxas de juros de longo prazo, muito elevadas, se configuram um problema para a captação em reais que a instituição pretende fazer, nos mesmos moldes do que fez em moedas locais no México e na Colômbia, entre outros. Esse, segundo ele, é "um desafio" a ser superado.

"A grande dificuldade é que as taxas de mercado longas do Brasil são bem mais altas que as da Colômbia, México e outros países em que o BID tem tido muito sucesso em emitir em moeda local, para investidores locais ou estrangeiros", avaliou ele. Isso significa que, mesmo que o banco consiga fazer a emissão abaixo da curva do Tesouro brasileiro, o custo ainda sairá por volta de IPCA mais 8%, o que é uma taxa substancial para os padrões internacionais, assinala.

Levy explica também que "uma emissão (em reais) sairá mais cara que os recursos de impostos aplicados pela União no BNDES, que são remunerados pela TJLP (por volta de IPCA mais 4%), e que os da poupança do trabalhador (FGTS), disponibilizado pela Caixa Econômica Federal para as prefeituras, cuja taxa básica é TR mais 3% ou TR mais 6%, dependendo da operação. Essa forquilha de taxas certamente representa um desafio importante".

Juros muito elevados também diferenciam o Brasil dos demais países em que o BID atua, em outras questões. Levy acha que tendo em vista o diferencial de custo financeiro do Brasil e do BID - no primeiro, o juro real básico está em torno de 9%; no segundo, a taxa nominal é 5,5% -, não faz sentido o Brasil pensar em antecipar a quitação de dívidas com a instituição, como fez no passado recente com o Fundo Monetário Internacional (FMI) e como fez, também recentemente, o México. "A dívida do BID hoje, dadas as circunstâncias do Brasil, deve ser a última a ser paga", aconselha ele, que foi até março secretário do Tesouro Nacional e um dos principais formuladores da equipe econômica de Antonio Palocci no Ministério da Fazenda.

Para o vice-presidente do BID, o futuro da América Latina está na integração, inclusive física. Levy comparou a região com a Ásia (China e Índia , especialmente), lembrando que, mesmo tendo crescido menos nos últimos 15 anos, os países do continente têm um nível de pobreza inferior ao daquela região. "A integração é necessária e condição básica para a geração de escala e capacidade da AL, condições necessárias para competir com a emergente Ásia", e esse é um dos focos do organismo multilateral.

O Brasil precisa de investimentos em infra-estrutura e o BID também quer aumentar os fluxos de recursos nessa área. Mas a ausência de prioridades claras, não raro, são um problema. "No Brasil se discute umas seis saídas, pelo menos, para a produção de soja do Centro-Oeste. Não sei qual é a ordem de prioridade, qual é a mais importante. Deveria ser a Norte-Sul? A Transnordestina? A BR- 163? A saída pelo rio Madeira?" , pergunta. A seguir, a íntegra da entrevista:

Valor: Após 15 anos de reformas, a América Latina continua crescendo a uma taxa muito inferior à dos países asiáticos. Como o sr. vê isso?

Joaquim Levy: Sempre que a gente compara a situação da América Latina até a década de 80 com a situação de agora, uma das coisas de que temos que nos lembrar é que, até a queda do Muro de Berlim (em 1989), a América Latina era uma espécie de "only business in town" (o único negócio na cidade). Ou seja, éramos a opção preferencial de todo investidor porque não havia muitas outras. Além de, ao longo da década de 80, ter havido uma enorme deterioração na América Latina de muitas coisas que obviamente não eram sustentáveis, temos que entender que, depois daquela época, as opções para os investidores mudaram radicalmente e vão continuar mudando.

Valor: Em que direção?

Levy: Com a queda do Muro de Berlim, todo o Leste Europeu se transformou e houve a abertura da Ásia. Então, é preciso entender a mudança da relação de competitividade, de atração de capital. A América Latina tem de continuar avançando e fazendo reformas e isso é uma necessidade. As duas grandes mudanças da América Latina dos últimos 20 anos são: o continente se tornou mais democrático, o que significa que as demandas e a complexidade da sociedade aumentaram e a concorrência externa também aumentou. Assim, qualquer estratégia tem de se basear nesses dois fatos.

Valor: Assim mesmo, não dá para comparar com a Ásia?

Levy: A proporção de pobreza no Brasil e no México, ou seja, as pessoas que viviam com menos de US$ 2 (cerca de R$ 4,34) em 2000 era de 20%. Na China, essa proporção em 2001, segundo o Banco Mundial, era de 40%. Na Índia, de 80%. Ao mesmo tempo, a Índia tem duas vezes a população da América Latina. A pobreza é um problema na América Latina, mas é um problema muito maior na Ásia, apesar de todo o crescimento dos últimos anos. Lá, a maioria dos países não tem a rede de proteção social que nós temos. A própria organização política, em alguns casos, é distinta da nossa.

Valor: Isso tudo não contaria a favor de um maior fluxo de capitais para a América Latina, em detrimento da Ásia?

Levy: Eu não saberia responder a isso, mas, no entanto, os antigos romanos diziam que o "dinheiro não tem cheiro". Não sei se isso nos dá alguma pista. Apesar de todos os pesares, a grande verdade é que a América Latina tem um problema, e é aí onde entram o BID e sua visão de integração.

Valor: Qual?

Levy: A Índia, apesar de ter 80% de seu povo vivendo com menos de US$ 2 por dia, tem uma população que vive num país cuja área é metade do Brasil. A América Latina tem uma população que é menos da metade da população da Índia, mas é segmentada. Então, a integração da região é, sim, muito importante.

Valor: Por que?

Levy: Porque nos dá escala, capacidade. O entendimento da importância da integração latino-americana para que possamos concorrer é fundamental.

Valor: Não estamos muito longe disso?

Levy: Estamos mais perto do que já estivemos. O presidente do BID, Luiz Alberto Moreno, aposta muito nisso e eu só um fã dessa idéia desde sempre, inclusive, da integração física da América Latina. A Irsa (Iniciativa de Integração Regional Sul-Americana, lançada em 2000) é uma iniciativa extraordinária.

Valor: O que o BID está fazendo para avançar nessa integração?

Levy: Uma das coisas é que estamos apoiando firmemente a Irsa. Damos apoio financiando os próprios estudos e projetos e, também, a toda a harmonização necessária, porque não basta fazer a integração física, é preciso unificar os procedimentos. Se você quer criar um mercado de gás, é importante que você tenha estabilidade nas regras do gás. O BID tem um departamento de integração que olha para essas coisas.

Valor: As novas lideranças políticas da região não preocupam o BID e não dificultam a integração?

Levy: Há muitas indicações sugerindo que esses novos ventos que sopram na América Latina são reflexos do sucesso do que vem sendo feito e não do fracasso.

Valor: Em que sentido?

-------------------------------------------------------------------------------- Integrar fisicamente a América Latina é algo em que todo mundo está interessado" --------------------------------------------------------------------------------

Levy: Você realmente só pode ter uma demanda mais séria por serviços e atender às maiorias em um sistema que é mais democrático e em um sistema em que você não está preocupado com a crise de amanhã. É natural que, no momento em que a região está melhor, em que já não existe aquela fumaça da inflação, em que há estabilidade, haja uma demanda mais clara. O que se articula atualmente é aumentar o grau de responsabilidade dos governos, em um processo, em muitos casos, salutar. Talvez não seja homogêneo na região, às vezes mais ou menos institucionalizado, dependendo do país. Integrar fisicamente a América Latina é algo em que todo mundo está interessado. Pode haver variedade de prioridades, mas vejo que, na América Central este é um tema totalmente pacífico. Há, na América do Sul, um apoio muito grande à idéia de integração. Temos espaço, no BID, para continuar emprestando, para ampliar a carteira com projetos cada vez mais sólidos. É importante notar que, independentemente de qualquer conjuntura em relação ao fluxo de divisas, os recursos do BID, particularmente no caso do Brasil, são significativamente mais baratos que aqueles levantados internamente ou nos mercados de capitais internacionais.

Valor: O senhor está dizendo que o governo deveria privilegiar mais os financiamentos de organismos multilaterais?

Levy: Qualquer administrador da dívida pública brasileira, certamente, fará uma comparação favorável do custo dos empréstimos dos multilaterais com o custo dos empréstimos do mercado, sobretudo, com o da dívida interna, que ainda está em torno de 9% reais. A dívida do BID hoje, dadas as circunstâncias do Brasil, deve ser a última a ser paga.

Valor: Com base nesse argumento, a dívida com o FMI também não deveria ter sido paga, não?

Levy: Não. A dívida do BID é de 11 anos. A do FMI era de 2 anos e estava ali, parada no Banco Central, congelada e nem considerávamos aquilo nas nossas reservas cambiais. São duas coisas diferentes - o quanto eu deveria aumentar as minhas reservas próprias, tema sobre o qual não tenho que opinar; e outra era pagar o Fundo, o que teria que ser feito este ano e no ano que vem. Portanto, o dinheiro iria embora. Outra coisa é um empréstimo de 10, 15 anos.

Valor: Qual tem sido o financiamento anual do BID para o Brasil?

Levy: No ano passado, o desembolso foi de US$ 1,48 bilhão. Este ano, até julho, de US$ 1,03 bilhão. Acho que podemos ir além disso. O BNDES, este ano, já pegou cerca de US$ 1 bilhão. Poderia ir para mais uns US$ 2 bilhões.

Valor: Qual o problema, falta de demanda?

Levy: Tem algo que distorce um pouco as coisas. Houve momento (durante as crises de 1998 e 2002) em que o BID deu empréstimos de emergência, para sustentar o balanço de pagamentos. O que a gente viu depois foram pagamentos daqueles enormes pacotes, concedidos em momentos de fragilidade da conta corrente. Isso é passado. Olhando para frente, o custo dos financiamentos do BID ainda é competitivo e isso não escapará a nenhum responsável pela administração da dívida. O México anunciou repagamento de dívida com o próprio BID, mas o México, segundo a "The Economist", no fim de julho tinha juro de 7,02% ao ano. Como a inflação está em 3,2%, o juro real gira em torno de 4%. No caso do Brasil, a taxa nominal está em 14,66%. Com inflação de 4%, o juro real está pouco abaixo de 10%. Obviamente, o empréstimo do BID sai, em termos nominais, em torno de 5,5% em dólares.

Valor: Há, no governo brasileiro, quem defenda pré-pagar o BID?

Levy: Não, mas como o México fez isso eu estou dizendo que não seria o caso do Brasil.

Valor: Taxa de câmbio no Brasil é um problema que preocupa o BID?

Levy: Normalmente essa não é uma área em que nós nos manifestamos.

Valor: A questão fiscal preocupa?

Levy: Eu diria que, em particular no que tange ao investimento em infra-estrutura temos que trabalhar para harmonizar a disciplina fiscal com a criação de espaços para investimentos. Isso envolve escolhas que se fizéssemos no período atual teriam enormes retornos. Há um sentimento em muitos círculos de que seria positivo focarmos no bom investimento em infra-estrutura. Há duas semanas tivemos uma reunião no BNDES com os administradores dos projetos dos 12 países que fazem parte da Irsa e transmitimos alguns sistemas de planejamento e acompanhamento para que eles melhorem a qualidade dos projetos. Esse sentimento de que há projetos que, se bem estruturados, podem atrair o setor privado, está ganhando corpo no Brasil. Alguns estudos sugerem que clarificar e mesmo harmonizar o marco regulatório poderia acelerar esse processo.

Valor: Para que áreas?

Levy: Na Irsa tem toda parte de discussão de marco regulatório, a parte dos chamados espaços de fronteira. Alguns estudos mostram que se poderia baixar o frete no comércio interregional de maneira significativa se um caminhão, em vez de passar dez horas na fronteira, passasse uma hora. Isso envolve talvez fazer uma obra, uma ponte, e organizar melhor o sistema de aduana.

Valor: Você falou em melhorar a qualidade dos projetos de infra-estrutura. Os do Brasil são muito ruins?

Levy: Uma questão, às vezes, é a da prioridade. No Brasil se discute umas seis saídas, pelo menos, para a produção de soja do Centro-Oeste. Não sei qual é a ordem de prioridade, qual é a mais importante. Deveria ser a Norte-Sul? A Transnordestina? A BR-163? A saída pelo Rio Madeira? Qual o custo relativo de cada uma delas e que tipo de prioridade se deveria dar a uma delas? Ou vai começar todas elas?

Valor: O BNDES está discutindo aumento de financiamento com o BID?

Levy: Queremos aumentar os financiamentos ao BNDES para pequenas e médias empresas. O presidente Moreno lançou recentemente a chamada "Iniciativa de Buscar Oportunidades Para a Maioria". Em alguns casos, o Brasil já vem fazendo, como aumentar a bancarização e o crédito. Dentro desse espírito, queremos aumentar o financiamento ao BNDES para que ele aumente os financiamentos para as pequenas e médias empresas, que têm grande impacto sobre o emprego.

Valor: O BID está planejando emitir papéis em reais?

Levy: Sim, recentemente o conselho de diretores autorizou o banco a emitir em reais para poder emprestar para o BNDES. Além disso, na assembléia dos governadores em Belo Horizonte, em abril, o presidente Moreno sinalizou para o governo e, em particular, para o ministro Paulo Bernardo, o interesse do BID em fazê-lo. Já fizemos isso em pesos mexicanos, pesos colombianos etc.

Valor: Isso deve acontecer logo?

Levy: Depende das condições de mercado. A grande dificuldade é que as taxas de mercado longas do Brasil são bem mais altas que as da Colômbia, México e outros países em que o BID tem tido sucesso em emitir em moeda local, para investidores locais ou estrangeiros. Isso significa que, mesmo que o BID possa emitir abaixo da curva do Tesouro brasileiro, o custo deve sair por volta de IPCA mais 8%, o que é considerável para padrões internacionais. Além disso, uma emissão deve sair mais cara que os recursos de impostos aplicados pela União no BNDES, que são remunerados pela TJLP (por volta de IPCA mais 4% ou menos), e que os da poupança do trabalhador (FGTS), disponibilizado pela Caixa Econômica Federal para as prefeituras, cuja taxa básica é TR mais 3% ou TR mais 6%, dependendo da operação. Essa forquilha de taxas certamente representa um desafio importante. Ainda é mais barato do que a União pode captar no mercado, ou seja, é um bom negócio para o Brasil, mas representa um esforço para o BNDES, a exemplo de qualquer captação que o BNDES tente fazer. Mas, considerando os próximos meses, estamos confiantes na eventual convergência das taxas de longo prazo no Brasil, dado o excelente desempenho da inflação e, principalmente, o cabedal de credibilidade que a política monetária já amealhou e se reflete nas projeções de inflação do mercado para os próximos anos.