Título: O quase consenso
Autor: Netto, Antonio Delfim
Fonte: Valor Econômico, 01/08/2006, Brasil, p. A2

Em matéria de política econômica e social o Brasil avançou muito nos últimos anos. A sociedade passou a compreender as limitações impostas pela escassez de recursos para satisfazer todas as suas necessidades. O maior avanço foi a recente "domesticação" da esquerda que, uma vez chegada ao poder, teve de lidar com o problema. Ninguém mais (talvez seja um pequeno exagero) dos membros da velha tribo acredita no pressuposto fundamental que o dominava: "dois mais dois podem ser cinco, desde que haja vontade política!"

Aparentemente, há um quase consenso sobre alguns pontos importantes:

1) que cabe ao Estado a produção de quatro bens públicos essenciais à construção de uma sociedade razoável: a) promover a igualdade de oportunidade para todos os cidadãos; b) promover um satisfatório provimento de justiça; c) promover um sistema eficiente de alocação dos recursos escassos através do "mercado" onde se estabelecem livremente os preços; e d) promover a estabilidade do poder de compra da moeda nacional;

2) que o equilíbrio fiscal com uma carga tributária mais leve (em torno de 25% do PIB, em lugar dos atuais 38%) e um endividamento mais modesto do Estado (em torno de 30% em lugar dos atuais 51%) são condições "sine qua non" para se obter taxas de juros reais razoáveis (talvez entre 2% e 4% em lugar dos "eternos" 10%), que estimularão uma taxa de investimento capaz de assegurar um crescimento sustentado robusto (qualquer coisa entre 5% e 7%);

3) que a sociedade rejeita qualquer aumento de impostos e o sistema financeiro se recusa a financiar o aumento do endividamento. Logo, não resta outra alternativa a não ser um "choque de gestão" capaz de incentivar ao longo de alguns anos um aumento de produtividade do setor público nos três níveis de governo;

4) que esse programa tem que começar pela fixação rigorosa das despesas de custeio dos governos ao seu valor real atual. Em outras palavras, elas serão corrigidas não pelo PIB nominal ou pelo nível da receita pública, como hoje, mas pelo Índice de Preços ao Consumidor (IPCA);

5) que o estranho conceito, que em linguagem orwelliana se denomina "superávit primário" (que não é "superávit" que possa ser gasto, mas gasto que já foi feito), deve ser calculado de modo a reduzir paulatinamente a relação dívida líquida/PIB, importante determinante da taxa de juro real;

-------------------------------------------------------------------------------- Crescimento é uma questão de estado de espírito --------------------------------------------------------------------------------

6) que a existência de boas instituições é fundamental para garantir um funcionamento eficiente do sistema de preços (o "mercado") como instrumento de alocação de recursos que são escassos e têm múltiplos usos;

7) que o "mercado" é compatível com a liberdade individual, mas não oferece nenhuma garantia para uma relativa igualdade que é intensamente desejada para o equilíbrio social, o que exige uma ação do Estado;

8) que a "eficiência" do mercado será percebida como socialmente injusta se não tiver em sua retaguarda uma política que aumente no tempo a igualdade de oportunidade para todos os cidadãos, não importando sua origem, cor, religião etc. É isso que garante que a "competição no mercado" será uma corrida mais honesta, onde todos começarão no mesmo ponto de partida. O provimento dessa igualdade de oportunidades é papel fundamental do Estado;

9) que é melhor que o Estado faça apenas aquilo que o setor privado não queira ou não tenha condições de fazer, e que controle as atividades econômicas com bons sistemas regulatórios aprovados pelo Congresso, através de agências com mandatos que as tornem imunes à pressão dos governos;

10) que é obrigação do governo dar aos empresários privados condições isonômicas de competição (carga tributária, taxa de juro real e taxa de câmbio) às dos seus concorrentes externos. Em princípio, essas condições podem ser proporcionadas pela combinação do sistema de "metas inflacionárias" com o sistema de "câmbio flutuante", sujeitas à auditoria do Congresso;

11) que a boa execução dessas tarefas deve ser feita por um Banco Central autônomo, com mandato fixo e bem constituído. Dado que a "teoria econômica" não é uma ciência exata, mas constituída por "escolas" com múltiplas visões e ideologias escondidas, essa constituição deve envolver uma diversidade cultural e geográfica, para compensar o evidente déficit democrático implicado na transferência do poder eleito para o poder "escolhido".

A incorporação dessas condições num programa de desenvolvimento nacional, que devolva entusiasmo ao "espírito selvagem" dos empresários, produzirá a volta do crescimento econômico tão desejado e dará ao Estado as condições de cumprir o seu papel na área de infra-estrutura e na geração do capital humano. O crescimento econômico é menos uma questão de teoria econômica e mais um estado de espírito! Começa por um governo que o entenda e respeite as condições objetivas dentro das quais ele pode realizar-se com equilíbrio interno e externo.