Título: Falta de educação
Autor: Mariz, Renata
Fonte: Correio Braziliense, 24/09/2010, Brasil, p. 10

Inspeção realizada como um projeto-piloto pelo CNJ em unidades de Goiás para jovens aponta uma série de irregularidades. A principal delas destaca o relatório inédito está na ausência de medidas de capacitação

Ao contrário de outros estados, onde a superlotação castiga as unidades de internação para menores infratores, Goiás não sofre tanto com o problema. Nem por isso os oito estabelecimentos inspecionados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), como piloto de um projeto denominado Medida Justa, deixam de apresentar problemas graves. Há três centros funcionando dentro de quartéis da Polícia Militar, 26 adolescentes detidos em cadeias públicas, e meninas no mesmo ambiente que meninos, separadas apenas por dormitórios. A estrutura visivelmente prisional, em detrimento das diretrizes determinadas pela política federal no que diz respeito às medidas socioeducativas, e um quadro funcional quase integralmente composto por trabalhadores temporários, que só podem ficar no cargo por no máximo dois anos, completam o diagnóstico desolador constatado em relatório inédito do CNJ.

Existe um esquecimento do Executivo local com relação às medidas socioeducativas. Não tem um orçamento próprio para a área, não tem professores, não tem salas de aulas, não tem laboratórios, não tem esportes, enumera Reinaldo Cintra, juiz auxiliar da Presidência do CNJ e um dos coordenadores do projeto Medida Justa, que esta semana iniciou visitas em seis estados e no Distrito Federal(1). A falta de um quadro funcional efetivo em Goiás, que se capacitasse e se dedicasse à atividade, leva a situações contraditórias, como as verificadas em unidades de Formosa e Jataí. Lá, há piscinas e campos de futebol construídos, mas que não são usados. Você não tem nem pessoal para fazer a manutenção dessas instalações. Enquanto isso os meninos ficam presos na ociosidade, sem qualquer tipo de trabalho de ressocialização, afirma Everaldo Sebastião de Sousa, coordenador do Centro de Apoio Operacional da Infância e da Juventude do Ministério Público de Goiás (MP-GO).

Sousa esclarece que há 400 aprovados em concurso recente, entre monitores, educadores e psicólogos que atualmente fazem um curso de capacitação para assumir os cargos nas unidades. O número, porém, está muito abaixo da necessidade, segundo o coordenador do MP-GO. Eles serão um terço de todo o quadro, adverte Sousa. A Secretaria Estadual de Cidadania e Trabalho, responsável pela administração dos estabelecimentos de internação dos adolescentes, foi insistentemente procurada pela reportagem, mas não disponibilizou nenhum representante para dar entrevista. Para o juiz Carlos José Limongi, coordenador da área da infância e juventude no Tribunal de Justiça de Goiás, o desfalque no efetivo é o responsável por mortes ocorridas em 2009 no centro de Anápolis. Depois de muitos anos sem incidentes, tivemos dois homicídios no estabelecimento da cidade, justamente quando houve 50% de redução do quadro, conta Limongi.

Outro fator grave apontado pelo documento do CNJ é a concentração territorial das unidades. Somado a isso, na maioria delas, a visita de familiares é permitida apenas durante a semana. Goiânia e arredores têm vagas, mas no norte do estado não. E os parentes, quase sempre pessoas com dificuldades financeiras, não podem fazer as visitas, primeiro porque muitas vezes têm dificuldade de pagar a condução. E nem podem fazer isso nos fins de semana, já que a visita é de segunda a sexta-feira. Claro que fere qualquer concepção de processo socioeducativo, em que a presença da família é fundamental, lamenta o juiz Cintra. Ele ressalta que, mesmo sem superlotação, já que 229 vagas de um total de 405 estão disponíveis, os centros goianos estão longe do ideal.

Outra ilegalidade constatada é que nenhuma unidade tem registro de projeto pedagógico no Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente, no âmbito estadual ou municipal, conforme determina o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). A consequência prática disso está na falta de uniformidade do serviço prestado. Apesar de não haver denúncias graves de maus-tratos ou tortura, a blitz do CNJ colheu relatos de comida ruim servida aos internos. A situação das meninas, que ficam em dormitórios isolados dentro de unidades masculinas, também recebeu críticas duras no documento.

E os juízes não aliviaram para a própria categoria. Falta de padronização nos procedimentos também foi apontada como um problema. Sugerimos uma capacitação para os juízes da infância na forma de conduzir os processos, na troca de documentos com outros órgãos, explicou Cintra.

1 - Superlotado O relatório referente à visita nas unidades do DF ainda vai ser elaborado, mas as primeiras impressões já deixaram o CNJ incomodado. No Caje, foi constatado 100% de superlotação. Além disso, há reclamações sobre a qualidade da alimentação oferecida, a falta de material nas oficinas, as poucas aulas e o deficit de professores.

"Demoramos cinco anos para conseguir a verba da Secretaria Especial de Direitos Humanos, do governo federal. Foram liberados R$ 7 milhões

Carlos José Limongi, coordenador da área da infância e juventude no Tribunal de Justiça de Goiás

Questão de compromisso

Uma informação que, na avaliação do magistrado Carlos José Limongi, coordenador da área da infância e juventude no Tribunal de Justiça de Goiás, deveria constar do relatório do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) é a demora na abertura de licitação para construção de uma unidade de internação em Anápolis que já tem aporte financeiro garantido. Demoramos cinco anos para conseguir a verba da Secretaria Especial de Direitos Humanos, do governo federal. Foram liberados R$ 7 milhões. Precisamos acionar a Justiça para obter os 10% de contrapartida do estado. E agora basta a Secretaria de Cidadania fazer a licitação. Faltam vontade política e compromisso com o tema, critica Limongi. Segundo ele, embora o CNJ aponte o contrário, faltam vagas em algumas unidades. Recentemente temos liberado os adolescentes por não termos condições de alocá-los, diz.

Em Anápolis, onde Limongi trabalha, o número de internos diminuiu de 29 para os atuais 15, devido à interdição de parte da unidade. Apesar das dificuldades, o juiz está determinado a garantir a construção do novo centro na cidade. Tem que sair de qualquer forma. Não podemos perder essa verba. Nossa falta de vagas reflete lá no interior, onde não há estabelecimentos e o juiz acaba tendo que colocar o adolescente em cadeia pública, afirma Limongi. Ele não descarta, inclusive, processar judicialmente os responsáveis do governo estadual caso a licitação continue emperrada. Cabe uma ação de responsabilidade, se eventualmente a situação se mantiver, explica. (RM)