Título: Reformar para crescer
Autor: Amaral, Sérgio
Fonte: Valor Econômico, 07/07/2006, Opinião, p. A12

Existe hoje um consenso de que o Brasil precisa crescer mais e de modo sustentado, assim como fazem vários países emergentes, como a China e a Índia, ou mesmo alguns de seus vizinhos latino-americanos. Precisa crescer mais para gerar mais empregos e melhores salários; para retirar mais ampla parcela da população da faixa de pobreza; para arrecadar mais, sem aumento da carga tributária, de modo a investir mais; para avançar mais rápido na rota de agregação de valor e do desenvolvimento. Para não ficar para trás, em relação ao grupo, cada vez mais importante, de países em desenvolvimento que estão crescendo substancialmente mais do que nós.

A questão está em saber por que isto não está ocorrendo, a despeito de condições extremamente favoráveis, talvez inéditas, na economia mundial. Algumas razões são bem conhecidas e têm sido reiteradas à sociedade. A taxa de juros mais alta do mundo (10% em termos reais, enquanto que a da China é negativa), uma carga tributária elevada (quase 40% do PIB, enquanto a da China é de 14%) e um câmbio que se vem apreciando continuadamente, colocando em risco o esforço exportador da economia e da sociedade.

Outros fatores estão na falta de uma política mais clara e efetiva para destravar os obstáculos (como os custos de infra-estrutura e os decorrentes da irracionalidade do sistema tributário) a um crescimento mais dinâmico da indústria, que tem sido, e continua a ser, o motor do desenvolvimento. Para promover o avanço tecnológico e a agregação de valor, assim como buscam fazer países emergentes e desenvolvidos, inclusive mediante políticas de favorecimento e de proteção, que em boa hora abandonamos, como escaladas tarifárias e mesmo substituição de exportações (como é o caso do café solúvel na Europa).

Por trás de algumas das razões apontadas, está um problema comum que vem assumindo dimensões preocupantes, a escalada do gasto público. Em décadas recentes - especialmente após a Constituição de 1988 - os gastos obrigatórios do governo federal passaram de 47% das despesas não-financeiras da União (DNF); ou seja, 7,6% do PIB, para 90% das DNF; ou seja, 16,5% do PIB, em 2005. Sem contar o pagamento de juros sobre a dívida, que já atinge a cifra astronômica de R$ 150 bilhões por ano. Estes números significam que os gastos obrigatórios (folha de pagamento de funcionários ativos e inativos, Previdência Social, entre outros), atingem quase 90% do orçamento federal, o que torna irrisório o esforço de contenção dos gastos concentrados em apenas 10% das despesas orçamentárias.

A conseqüência está na expressiva redução dos investimentos públicos. Os do governo federal, passaram de 2,3% do PIB, em 87, a 0,5% do produto em 2005. Assim, de tudo o que o setor público arrecada, só 0,5% do PIB se traduzem em investimento. O restante se destina ao custeio da máquina pública federal. Isto explica, mas não justifica, a lamentável deterioração da infra-estrutura, particularmente no setor de transportes. Os investimentos da União em transportes atingiram R$ 4,2 bilhões em 1999. Caíram para R$ 1,6 bilhões em 2004, não obstante a entrada em vigor da Cide, criada com o objetivo de arrecadar recursos para a manutenção das estradas. A Cide recolheu mais de R$ 7 bilhões em 2004, mas estes recursos foram contingenciados.

-------------------------------------------------------------------------------- A raiz do problema está no aumento sem controle do gasto público, em alguns casos por força de preceito constitucional --------------------------------------------------------------------------------

O aumento do dispêndio não é certamente o único dos males. As taxas de juros estratosféricas com as quais convivemos decorrem em certa medida do excesso de zelo ou autoconfiança do Banco Central, em sua tentativa vã de compensar, via política monetária, os desacertos da política fiscal. É também verdade que a excessiva valorização do real frente ao dólar se deve em parte aos saldos comerciais dos últimos anos. As modalidades perversas do aumento da carga tributária provêm, em certa medida, das distorções do sistema tributário. Por fim, muito poderia ser economizado por um choque de gestão, como fizeram vários Estados da federação.

A despeito de tudo isto, é inegável que a raiz do problema está no aumento indisciplinado do gasto público, em alguns casos por força de preceitos constitucionais. Alguns deles dizem respeito à ordem tributária e impõem uma partilha de recursos entre a União, os Estados e os Municípios, como é o caso das transferências de recursos arrecadados pelo Imposto sobre a Renda. Outros, ao setor da "seguridade social", que consome 56% dos recursos orçamentários da União, cerca de 10,5% do PIB, ou seja, algo da ordem de 202 bilhões de reais. Num país de profundas desigualdades sociais, não cabe questionar a necessidade de proteção dos grupos desfavorecidos. Mas é difícil justificar os abusos que preceitos constitucionais vinham permitindo, como pensões descabidamente elevadas ou aposentadorias em idade precoce.

Estes são apenas alguns exemplos de correções que precisariam ser feitas para conter a expansão dos gastos e melhorar a sua qualidade. Algumas implicam mudanças constitucionais, outras não. Ambas são urgentes. A verdade é que o próximo governo, quem quer que seja eleito, terá de enfrentar desafios, nos seis primeiros meses de seu mandato, sob a pena de enfrentar uma crise fiscal ou, o que seria igualmente grave, não conseguir retomar taxas mais elevadas de crescimento sustentado.

Este foi o tema do Congresso da Indústria, que se realizou nos dias 25 e 26 de maio, em São Paulo. O que é preciso mudar para voltar a crescer a taxas mais elevadas? Assim como ocorreu com a inflação no passado, nos acostumamos a conviver com o déficit público e o crescimento baixo. A crise fiscal se banalizou. Um crescimento da ordem de 3% a 4% chega a ser festejado. Foi preciso chegar a uma inflação de 84% ao mês para que a sociedade se mobilizasse para domar o dragão da inflação. O dragão fiscal é mais voraz e perigoso, pois trava o crescimento. Mas não assistimos ainda uma mobilização da sociedade. Até quando?

(Os dados citados foram retirados de apresentação de Raul Velloso).

Sergio Amaral, diplomata, é coordenador dos Conselhos Superiores Temáticos da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp).